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domingo, 24 de março de 2013

OS SETE BRADOS DO SALVADOR SOBRE A CRUZ - QUINTA PARTE


 5. A PALAVRA DE SOFRIMENTO

“Sabendo Jesus que já todas as coisas estavam terminadas, para que a Escritura se        cumprisse, disse: Tenho sede”
João 19.28
“TENHO SEDE”. Tais palavras foram faladas pelo Salvador padecente um pouco antes de ele curvar sua cabeça e render o espírito. Somente são registradas pelo evangelista João e, como podemos ver, é conveniente que elas devam ter lugar em seu evangelho, pois não apenas demonstram sua humanidade, mas também salientam sua glória divina.
“Tenho sede”. Que texto para um sermão! Um sermão curto e verdadeiro, e contudo quão abrangente, quão expressivo, e quão trágico! O Criador dos céus e da terra com os lábios ressecados! O Senhor da glória precisando de um gole de água! O Amado do Pai clamando, “Tenho sede!” Que cena! Que palavra, essa! Claramente, nenhuma pena não inspirada traçou um quadro desses.
Outrora o Espírito de Deus moveu Davi a dizer a respeito do Messias vindouro: “Deram-me fel por mantimento, e na minha sede me deram a beber vinagre” (Sl 69.21). Quão maravilhosamente completa foi a previsão da profecia! Nenhum item essencial lhe estava faltando. Todo detalhe importante da grande tragédia fora escrito de antemão. A traição por um amigo íntimo (Sl 41.9), a deserção dos discípulos por ficarem escandalizados com ele (Sl 31.11), a acusação falsa (Sl 35.11), o silêncio perante seus juízes (Is 53.7), sua ausência de culpa provada (Is 53.9), o ser contado entre os transgressores (Is 53.12), o ser crucificado (Sl 22.16), a zombaria dos espectadores (Sl 109.25), o escárnio pelo não-livramento (Sl 22.7, 8), o sorteio de suas vestes (Sl 22.18), a oração por seus inimigos (Is 53.12), o ser desamparado por Deus (Sl 22.1), a sede (Sl 69.21), o render de seu espírito nas mãos do Pai (Sl 31.5), os ossos não quebrados (Sl 34.20), o sepultamento na tumba de um rico (Is 53.9); tudo claramente predito séculos antes de se suceder. Que evidência convincente da inspiração divina das escrituras!
Quão firme fundamento vós, santos do Senhor, está posto para sua fé, na sua palavra excelente!
“Tenho sede”. O fato que está aqui registrado como uma das sete elocuções de nosso Senhor na cruz sugere que seja uma palavra de precioso significado, uma palavra para ser entesourada em nossos corações, uma palavra merecedora de prolongada meditação.
Temos visto que cada um dos ditos anteriores do Salvador padecente tem muito a nos ensinar e, certamente, esse não pode ser uma exceção. O que então podemos deduzir dele? Quais são as lições que essa quinta palavra da série nos ensina? Possa o Espírito da verdade iluminar nosso entendimento à medida que nos esforçamos para fixar nela nossa atenção.

“Tenho sede”

1. Temos aqui uma prova da humanidade de Cristo.

O Senhor Jesus era Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, mas também foi homem verdadeiro vindo de homem verdadeiro. Isso é algo para ser crido e não para que a orgulhosa razão sobre ele especule. A pessoa de nosso adorável Salvador não é um objeto adequado para a diagnose intelectual; antes, devemos nos curvar diante dele em adoração. Ele mesmo nos avisou: “Ninguém conhece o Filho, senão o Pai” (Mt 11.27). E outra vez o Espírito de Deus, através do apóstolo Paulo, declara: “E evidentemente é grande o mistério da piedade com que Deus se manifestou em carne” (1Tm 3.16, Vulgata [1]). Enquanto pois há muita coisa acerca da pessoa de Cristo que nos é insondável ao próprio entendimento, todavia, tudo que há sobre ele é para se admirar e prestar adoração: em primeiro lugar, sua deidade e humanidade, e a perfeita união dessas duas em uma única pessoa. O Senhor Jesus não foi um homem divino, nem um Deus humanizado; foi o Deus-homem. Para sempre Deus, e agora para sempre homem.
Quando o Amado do Pai encarnou-se, não cessou de ser Deus, nem pôs de lado nenhum de seus atributos divinos, ainda que tenha se despojado da glória que tinha com o Pai antes de haver o mundo. Mas na encarnação, o Verbo se fez carne e tabernaculou [2] entre os homens. Ele não deixou de ser tudo o que era anteriormente, mas tomou para si o que não tinha antes — humanidade perfeita.
A deidade e a humanidade do Salvador foram, cada uma delas, contempladas na predição messiânica. A profecia representava aquele que havia de vir, ora como divino, ora como humano. Ele era o “Renovo do Senhor” (Is 4.2). Ele era o Maravilhoso, o Conselheiro, o Deus forte, o Pai dos séculos (Hebreus [3]), o “Príncipe da paz” (Is 9.6). Aquele que haveria de sair de Belém e ser rei em Israel, era aquele cujas saídas são desde os dias da eternidade (Mq 5.2). Ele era ninguém menos do que o próprio Jeová que apareceria de repente no templo (Ml 3.1). Todavia, por outro lado, ele era a “semente” da mulher (Gn 3.15); um profeta como Moisés (Dt 18.18); um descendente da linhagem de Davi (2Sm 7.12,13). Ele era o “servo” de Jeová (Is 42.1). Ele era o “homem de dores” (Is 53.3). E é no Novo Testamento que nós vemos esses dois diferentes grupos de profecias harmonizados.
Aquele nascido em Belém era o Verbo divino. A Encarnação não significa que Deus se manifestou como um homem. O Verbo se fez carne; tornou-se o que não era antes, ainda que nunca cessasse de ser tudo o que fora anteriormente. Aquele que era em forma de Deus e que não teve por usurpação ser igual a Deus “aniquilou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens” (Fp 2.6,7). O bebê de Belém era Emanuel — Deus conosco —, era mais do que uma manifestação de Deus, ele era Deus manifestado em carne. Era tanto Filho de Deus como Filho do Homem.
Não duas personalidades separadas, mas uma pessoa possuindo as duas naturezas — a divina e a humana.
Enquanto aqui na terra, o Senhor Jesus deu provas completas de sua divindade. Ele falava com sabedoria divina, ele agia em santidade divina, ele exibia poder divino, e ele mostrava amor divino. Ele lia as mentes dos homens, movia seus corações e compelia-os em suas vontades. Quando a ele agradava exercer seu poder, toda a natureza ficava sujeita ao seu mando. Uma palavra dele e a enfermidade saía, uma tempestade era acalmada, o demônio partia, o morto retornava à vida. Tão verdadeiramente era ele Deus manifesto em carne, que podia dizer: “Quem vê a mim vê o Pai”.[4]
Assim, também, quando tabernaculava entre os homens, o Senhor Jesus dava total prova de sua humanidade — humanidade sem pecado. Ele adentrou a esse mundo como bebê e estava envolto em panos (Lc 2.7). Quando criança, é-nos dito, ele “crescia... em sabedoria, e em estatura” (Lc 2.52). Quando menino, encontramo-lo “interrogando” os doutores (Lc 2.46). Quando homem, seu corpo esteve “cansado” (Jo 4.6). Ele “teve fome” (Mt 4.2). Ele dormiu (Mc 4.38). Ele ficou “admirado” (Mc 6.6). Ele “chorou” (Jo 11.35). Ele “orava” (Mc 1.35). Ele “se alegrou” (Lc 10.21). Ele “gemeu internamente” (Jo 11.33, Vulgata [5]). E aqui em nosso texto ele clamou: “Tenho sede”. Isso demonstrava sua humanidade. Deus não tem sede. Os anjos também não. Não a teremos na glória:
“Nunca mais terão fome, nunca mais terão sede” (Ap 7.16). Mas temos sede agora, porque somos humanos e estamos vivendo num mundo de dor. E Cristo ficou sedento porque era homem: “Pelo que convinha que em tudo fosse semelhante aos irmãos” (Hb 2.17).

“Tenho sede”

2. Vemos aqui a intensidade dos sofrimentos de Cristo.
Vamos primeiro considerar esse brado do Salvador como uma expressão de seu sofrimento corporal. Para perceber algo do que há por trás de tais palavras devemos relembrar e rever o que as precede. Após instituir a Ceia no cenáculo, seguida pelo longo discurso pascal a seus apóstolos, o Redentor transferiu-se para o Getsêmane e ali, por uma hora, passou pela mais excruciante agonia. Sua alma estava extremamente triste. Enquanto ele contemplava o terrível cálice dele escorria, não suor, mas grandes gotas de sangue.
Sua luta no Jardim foi finda com o aparecimento do traidor acompanhado pelo bando que viera prendê-lo. Ele foi trazido perante Caifás e, ainda que fosse metade da noite, foi examinado e condenado. O Salvador foi retido até de manhã cedo, e após as fatigantes horas de espera haverem terminado, foi levado para diante de Pilatos. Seguindo um longo julgamento, ordens foram dadas para que se o açoitassem. Em seguida, foi conduzido, talvez atravessando direto pela cidade, à corte de julgamento de Herodes e, depois de uma breve aparição perante esse prelado romano, foi entregue às mãos dos brutais soldados. Novamente foi ele escarnecido e chicoteado, e outra vez foi levado através da cidade, de volta a Pilatos. Mais uma vez houve a enfadonha demora, as formalidades de um julgamento, se é que uma tal farsa seja merecedora desse nome, seguida pela sentença de morte dada.
Então, com as costas sangrando, carregando sua cruz sob o calor do sol do já quase meio-dia, ele caminhou até às escarpadas alturas do Gólgota. Atingindo o lugar designado da execução, suas mãos e pés foram pregados ao madeiro. Por três horas ele ficou ali pendurado com os inclementes raios solares incidindo sobre sua cabeça coroada de espinhos. Isso foi seguido pelas três horas de trevas que agora o cobria.
Aquela noite e aquele dia foram horas nas quais uma eternidade foi condensada. Todavia, durante toda ela, nem uma só palavra de murmuração passou em seus lábios. Não havia queixa alguma, nenhum rogo por misericórdia. Todos os seus sofrimentos foram suportados em augusto silêncio. Como uma ovelha muda perante seus tosquiadores, ele não abriu a sua boca.[6] Mas agora, no fim, seu corpo arruinado, dorido, sua boca ressecada, ele clama, “Tenho sede”. Não foi um apelo por compaixão, nem um pedido pela mitigação de seus sofrimentos; ele expressou a intensidade das agonias por que estava passando.
“Tenho sede”. Isso era mais do que a sede comum. Era algo mais profundo do que os sofrimentos físicos por detrás dela. Uma comparação cuidadosa de nosso texto com o de Mateus 27.48 mostra tais palavras “Tenho sede” seguidas imediatamente após a quarta elocução de nosso Salvador na cruz — “Eli, Eli, lama sabactâni” — pois enquanto o soldado estava pressionando a esponja embebida em vinagre nos lábios do padecente, alguns dos espectadores gritaram: “Deixa, vejamos se Elias vem livrá-lo”. Todos sabemos que as provações internas da alma reagem no corpo, destruindo os nervos e afetando o vigor — “O espírito abatido virá a secar os ossos” (Pv 17.22); “Enquanto eu me calei, envelheceram os meus ossos pelo meu bramido em todo o dia. Porque de dia e de noite a tua mão pesava sobre mim; o meu humor se tornou em sequidão de estio” (Sl 32.3,4). O corpo e a alma são solidários um com o outro. Lembremo-nos de que o Salvador havia acabado de emergir das três horas de trevas, durante as quais a face de Deus havia se retirado dele enquanto sofria a fúria de sua ira derramada. Esse grito de sofrimento do corpo diz-nos, então, da severidade do conflito espiritual que ele tinha acabado de passar! Falando com antecedência pela boca de Jeremias dessa hora mesma, ele disse: “Não vos comove isto a todos vós que passais pelo caminho? atendei, e vede, se há dor como a minha dor, que veio sobre mim, com que me entristeceu o Senhor, no dia do furor da sua ira. Desde o alto enviou fogo a meus ossos, o qual se assenhoreou deles; estendeu uma rede aos meus pés, fez-me voltar para trás, fez-me assolada e enferma todo o dia” (Lm 1.12,13). Sua “sede” foi o efeito da agonia de sua alma no feroz calor da ira divina. Falava da seca da terra onde o Deus vivo não está. Mais ainda: claramente expressava seu anelo por comunhão novamente com ele, de quem ficara separado por três horas. Não foi o próprio Cristo quem disse, pelo espírito de profecia, e o faz agora, assim que emergiu das trevas: “Como o cervo brama pelas correntes de águas, assim suspira a minha alma por ti, ó Deus! A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo: quando entrarei e me apresentarei ante a face de Deus?” Não identificam as palavras seguintes quem fala e não revelam elas o tempo em que aquele anelo e “suspiro” foram expressos? “As minhas lágrimas servem-me de mantimento de dia e de noite, porquanto me dizem constantemente: Onde está o teu Deus?” (Sl 42.1-3).

“Tenho sede”

3. Aqui vemos a profunda reverência de nosso Senhor pelas escrituras.
Quão constantemente a mente do Salvador se voltava aos oráculos sagrados! Ele de fato vivia de toda a palavra que sai da boca de Deus.[7] Era o “Bem-aventurado Homem” que meditava na lei de Deus “de dia e de noite” (Sl 1). A palavra escrita era o que formava seus pensamentos, preenchia o seu coração, e regulava os seus caminhos. As escrituras são a vontade do Pai transcrita, e essa foi sempre o seu deleite. Na tentação, aqueles escritos foram sua defesa. Em seu ensino os estatutos do Senhor foram sua autoridade. Em suas controvérsias com os escribas e fariseus, sempre apelou à lei e ao testemunho.[8] E agora, na hora da morte, sua mente permanecia na palavra da verdade.
A fim de alcançar a força principal dessa quinta elocução do Salvador na cruz, devemos reparar em seu contexto: “Sabendo Jesus que já todas as coisas estavam terminadas, para que a Escritura se cumprisse, disse: Tenho sede” (Jo 19.28). A referência é ao Salmo 69 — mais um dos salmos messiânicos que descrevem tão vividamente sua paixão. No espírito de profecia, havia declarado: “Deram-me fel por mantimento, e na minha sede me deram a beber vinagre” (v. 21). Isso ainda estava sem ser concluído. As predições dos versículos precedentes já tinham recebido seu cumprimento. Ele já havia atolado no “profundo lamaçal” (v. 2); ele havia sido aborrecido “sem causa” (v. 4); ele havia “suportado afrontas” e confusão (v. 7); ele havia se “tornado como um estranho” para os seus irmãos (v. 8); ele havia se tornado “um provérbio” para os seus injuriadores, e “a canção dos bebedores de bebida forte” (vv. 11,12); ele havia “clamado a Deus” em sua angústia (vv. 17-20) — e agora nada mais faltava senão oferecer a ele a bebida de vinagre e fel, e a fim de cumprir isso foi que ele bradou: “Tenho sede”.
“Sabendo Jesus que já TODAS as coisas estavam terminadas, para que a Escritura se cumprisse, disse: Tenho sede”. Quão completamente calmo estava o Salvador! Ele estava pendurado naquela cruz por seis horas e havia passado por sofrimento sem paralelo, e contudo sua mente está clara e sua memória intacta. Tinha diante de si, com perfeita distinção, toda a palavra divina. Ele revisava o escopo todo da predição messiânica. Ele lembra-se de que há uma profecia escriturística que não foi levada a cabo. Ele não passou por cima de nada. Que prova essa de que ele era divinamente superior a todas as circunstâncias!
Antes de prosseguirmos devemos brevemente indicar uma aplicação para nós mesmos. Temos observado como o Salvador se curvou à autoridade da escritura tanto na vida quanto na morte; leitor cristão, como isso se dá contigo? O livro divino é a corte final de apelação a você? Você descobre nela uma revelação da mente e da vontade de Deus concernente a você? Ela é uma lâmpada para os seus pés? [9] Ou seja, você está andando em sua luz? [10] Os seus mandamentos são obrigatórios para você?
Você está realmente obedecendo-a? Você pode dizer com Davi, “Escolhi o caminho da verdade; propus-me seguir os teus juízos. Apego-me aos teus testemunhos... Considerei os meus caminhos, e voltei os meus pés para os teus testemunhos. Apressei-me, e não me detive, a observar os teus mandamentos” (Sl 119.30,31,59,60)? Você, como o Salvador, está ansioso por cumprir as escrituras? Ó, possam o escritor e o leitor buscar graça para orar de coração: “Faze-me andar na vereda dos teus mandamentos, porque nela tenho prazer. Inclina o meu coração a teus testemunhos... Ordena os meus passos na tua palavra, e não se apodere de mim iniqüidade alguma” (Sl 119.35,36,133).

“Tenho sede”


4. Vemos aqui a submissão do Salvador à vontade do Pai.
O Salvador estava com sede, e aquele que tinha tal sede, lembremos, possuía todo o poder no céu e na terra.[11] Houvesse ele escolhido exercitar sua onipotência, poderia prontamente ter satisfeita a sua necessidade. Aquele que outrora fizera a água fluir da rocha ferida para saciar Israel no deserto,[12] tinha os mesmos recursos infinitos à sua disposição agora. Aquele que tornara a água em vinho com uma palavra,[13] poderia ter dito a palavra de poder aqui, e satisfazer a sua necessidade. Mas ele, em nenhuma vez, operou um milagre para seu próprio benefício ou conforto. Quando tentado por Satanás para assim agir, recusou. Por que agora ele declina de atender a sua premente necessidade? Por que pendia na cruz com os lábios ressecados? Porque no princípio do livro que expressava a vontade divina, estava escrito que ele devia ter sede, e que, sedento, devia lhe ser “dado” vinagre para beber. E ele aqui veio para fazer aquela vontade e, por isso, se submete.
Na morte, como na vida, a escritura foi para o Senhor Jesus a palavra autorizada do Deus vivo. Na tentação, recusara-se a ministrar à sua necessidade à parte daquela palavra pela qual ele vivia 90 e assim, agora, ele faz conhecida sua necessidade, não para que se pudesse ministrar a ela, mas para que a escritura pudesse ser cumprida. Note que ele mesmo não a cumpriu, a Deus pode ser confiado que cuide disso; mas ele dá expressão à sua angústia de modo a fornecer ocasião para o seu cumprimento. Como alguém disse: “A terrível sede da crucificação está sobre ele, mas que não é suficiente para forçar seus lábios ressecados para falar; mas está escrito: Na minha sede me deram a beber vinagre — isso abre os seus lábios” (F. W. Grant). Aqui, então, como sempre, ele mostra a si mesmo em ativa obediência à vontade de Deus, a qual ele veio para executar. Ele simplesmente diz, “Tenho sede”; o vinagre é oferecido, e a profecia é cumprida. Que perfeita absorção na vontade do Pai!
Novamente damos uma pausa para a aplicação a nós mesmos — uma aplicação dupla. Primeiro, o Senhor Jesus se deleitava na vontade do Pai mesmo quando envolvia o sofrimento da sede. Nós fazemos esse tipo de renúncia para ele? Temos nós buscado graça para dizer: “Não se faça a minha vontade, mas a tua”? [14] Podemos nós exclamar, “Sim, ó Pai, porque assim te aprouve”? [15] Temos nós aprendido em qualquer estado que seja a “viver contente” (Fp 4.11)?
Mas agora, observe um contraste. Ao Filho de Deus foi negado um copo de água fria para aliviar seu sofrimento — quão diferente conosco! Deus nos tem dado uma variedade de alívios para nós, todavia, quão freqüentemente somos mal-agradecidos! Temos coisas melhores para nos deliciar do que um copo d’água quando estamos sedentos, entretanto, amiúde não somos gratos. Ó, se esse brado de Cristo fosse com mais credulamente considerado, levar-nos-ia a bendizer a Deus pelo que nós agora quase desprezamos, e geraria contentamento em nós pela mais comum das misericórdias. O Senhor da glória clamou, “Tenho sede” e nada teve à sua volta para confortá-lo, e tu, que tens mil vezes perdido todo direito às misericórdias tanto temporais quanto espirituais, menosprezas as bondades comuns da providência! Quê! murmuras de um copo de água, tu que mereces senão um copo de ira. Ó, ponha isso no coração e aprenda a se contentar com o que tens, ainda que seja mesmo as necessidades mais simples da vida. Não se queixe se você mora apenas em uma humilde cabana, pois seu Salvador não tinha onde reclinar a cabeça [16]! Não se queixe se você não tem nada senão pão para comer, pois a seu Salvador faltou isso por quarenta dias [17]! Não se queixe se você tem apenas água para beber, pois a seu Salvador ela foi negada até na hora da morte!

“Tenho sede”

5. Vemos aqui como Cristo pode se solidarizar com seu povo sofredor.
O problema do sofrimento sempre foi um que causou perplexidade. Por que o sofrimento deve ser necessário em um mundo que é governado por um Deus perfeito? Um Deus que não apenas tem poder para impedir o mal, mas que é amor.[18] Por que deve haver dor e desgraça, doença e morte? À medida que olhamos o mundo e tomamos conhecimento de suas incontáveis pessoas que sofrem, ficamos desconcertados. Esse mundo não é senão um vale de lágrimas. Uma fina aparência de alegria raramente tem êxito em esconder os tristes fatos da vida. Filosofar sobre o problema do sofrimento traz  [19]  parco alívio. Após todos os nossos raciocínios, perguntamos, Deus vê?            Há conhecimento no Altíssimo? [20] Ele realmente se importa? Como todas as questões, essas devem ser levadas à cruz. Enquanto não acham elas uma resposta completa, entretanto elas encontram sim aquela que satisfaz o coração ansioso. Enquanto o problema do sofrimento não é plenamente resolvido aqui, todavia a cruz lança sim luz suficiente sobre ele para aliviar a tensão. A cruz mostra-nos que Deus não ignora nossas dores, pois na pessoa de seu Filho ele mesmo “tomou sobre si as nossas enfermidades, e as nossas dores” (Is 53.4, ARA)! A cruz nos mostra que Deus não está desatento às nossa tristeza e angústia, pois, ao se encarnar, ele próprio sofreu! A cruz diz-nos que Deus não é indiferente à dor, pois no Salvador ele a experimentou!
Qual então o valor de tais fatos? Este: “Porque não temos um sumo sacerdote que não pode compadecer-se das nossas fraquezas; porém um que, como nós, em tudo foi tentado, mas sem pecado” (Hb 4.15). Nosso Redentor não é alguém tão afastado de nós que seja incapaz de entrar, solidariamente, em nossas tristezas, pois ele mesmo foi o “Homem de Dores”.[21] Aqui então está o conforto para o coração dorido. Não importa quão desalentado possa estar você, não importa quão escarpada a sua senda e triste o seu quinhão, você é convidado a pô-lo todo diante do Senhor Jesus e lançar todo seu cuidado sobre ele, sabendo que “tem cuidado de vós” (1Pd 5.7). O seu corpo está arruinado pela dor? Assim estava o dele! Você é mal interpretado, julgado injustamente, deturpado? Assim era ele! Aqueles que lhe são mais próximos e mais queridos deram às costas a você? Fizeram isso com ele! Você está em trevas? Ele esteve assim por três horas! “Pelo que convinha que em tudo fosse semelhante aos irmãos, para ser misericordioso e fiel sumo sacerdote” (Hb 2.17).

“Tenho sede”

6. Vemos aqui a expressão de uma necessidade universal.
Quer o homem natural, o mundano, articule-o ou não, seu clamor é, “Tenho sede”. Porque esse desejo consumidor para adquirir bens? Por que esse desejo ardente pelas honras e aplausos do mundo? Por que essa corrida louca por prazer, indo de uma forma a outra dele com diligência persistente e incansável? Por que essa busca ávida por sabedoria — essa investigação científica, esse empenho da filosofia, esse saque aos manuscritos dos antigos, e essa experimentação incessante dos homens modernos? Por que essa loucura por aquilo que é novo? Por quê? Porque há uma voz de dor na alma.
Porque há algo remanescente no homem natural que não está satisfeito. Isso é verdadeiro tanto para o milionário quanto para o camponês do interior que nunca esteve fora dos limites de sua terra: viajando de um extremo a outro da terra e fazendo-o outra vez, não consegue descobrir o segredo da paz. Sobre tudo o que as cisternas deste mundo fornecem está escrito nas letras da verdade inefável: “Qualquer que beber desta água tornará a ter sede” (Jo 4.13). Assim se dá com o homem ou a mulher religiosos:
queremos dizer, os religiosos sem Cristo. Quantos há que vão pelo fatigante ciclo das ações religiosas, e nada encontram que satisfaça suas profundas necessidades! Eles são membros de uma denominação evangélica, freqüentam a igreja com regularidade, contribuem com seus recursos para o sustento do pastor, lêem suas Bíblias ocasionalmente, e algumas vezes oram, ou, se usam um “livro de orações”, dizem-nas toda noite. E contudo, afinal de contas, se eles são honestos, seu clamor ainda é, “Tenho sede”.
A sede é uma sede espiritual; eis o porquê das coisas naturais não poder matá-la. Desconhecido deles mesmos, sua alma “tem sede de Deus” (Sl 42.2). Deus nos fez, e só ele pode nos satisfazer. Disse o Senhor Jesus: “Aquele que beber da água que eu lhe der nunca terá sede” (Jo 4.14). Apenas Cristo pode saciar a nossa sede. Apenas ele pode satisfazer a profunda necessidade dos nossos corações. Apenas ele pode comunicar aquela paz de que o mundo nada sabe e nem a pode conceder ou tirar. Ó leitor, uma vez mais eu me dirijo a tua consciência. Como está ela contigo? Descobriste que tudo debaixo do sol é somente vaidade e aflição de espírito? [22] Descobriste que as coisas terrenas são incapazes de satisfazer a seu coração? É o brado de sua alma, “Tenho sede”? Então, não são boas notícias ouvir que há alguém que pode satisfazer a ti? Dissemos alguém, não um credo, não uma forma de religião, mas uma pessoa — uma pessoa viva, divina. Ele é o que diz: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei” (Mt 11.28). Atente então a esse doce convite. Venha a ele agora, assim como estás. Venha em fé, crendo que ele te receberá, e então cantarás:

Vim a Jesus como estava,
Farto, cansado, e triste;
Nele encontrei um lugar de descanso,
E ele me tornou alegre.[23]

Ó, venha a Cristo. Não se detenha. Você tem “sede”? Então você é aquele que está buscando: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos” (Mt 5.6).
Leitor não salvo, não rejeite o Salvador, pois se você morrer em seus pecados seu clamor para todo o sempre será, “Tenho sede”. Esse é o lamento do condenado eternamente. No lago de fogo o perdido sofrerá entre as chamas da ira divina por toda a eternidade. Se Cristo clamou “Tenho sede” quando padecia da ira de Deus só por três horas, qual o estado daqueles que terão de suportá-la eternamente! Quando milhões de anos tiverem se passado, mais dez milhões haverá à frente. Há uma sede perene no inferno, que não admite alívio algum. Lembre-se das pavorosas palavras do homem rico: “E, clamando, disse: Pai Abraão, tem misericórdia de mim, e manda a Lázaro, que molhe na água a ponta do seu dedo e me refresque a língua, porque estou atormentado nesta chama” (Lc 16.24). Ó, meu leitor, pense. Se a sede física extrema é insuportável mesmo quando suportada por algumas poucas horas, como será aquela sede que está infinitamente além de qualquer sede do presente, e que nunca será saciada! Não diga que é cruel da parte de Deus lidar desse modo com suas criaturas que erram. Lembre ao que ele expôs seu querido Filho, quando o pecado lhe foi imputado — seguramente, aquele que despreza a Cristo é merecedor do mais quente lugar no inferno! Dizemo-lo outra vez, Receba-o agora como seu. Receba-o como seu Salvador, e submeta-se a ele como seu Senhor.

“Tenho sede”

7. Aqui vemos a declaração de um princípio permanente.
Há um sentido, um sentido real, em que Cristo ainda tem sede. Ele está sedento pelo amor e pela devoção dos seus. Ele anseia pela companhia do povo que comprou com seu sangue [24]. Eis aqui uma das grandes maravilhas da graça — um pecador redimido pode oferecer aquilo que satisfaz o coração de Cristo! Posso compreender como devo apreciar seu amor, mas quão maravilhoso que ele — o todo-suficiente — deva apreciar o meu! Eu aprendi quão abençoada é para minha alma a comunhão com ele, mas quem suporia que minha comunhão fosse bendita para Cristo! Todavia o é. Por isso ele ainda “tem sede”. A graça nos capacita a oferecer aquilo que o refrigera. Maravilhoso pensamento!
Você já reparou em João 4 que, embora Cristo dissesse à mulher que veio ao poço, “Dáme de beber” — pois ele assentou-se ali “cansado” da viagem e do calor — que ele nunca tomou um gole de água? Na salvação e na fé daquela mulher samaritana ele achou aquilo que refrescou seu coração! O amor nunca fica satisfeito até que haja uma resposta e amor em troca! Assim o é com Cristo. Aqui está a chave para Apocalipse 3.20: “Eis que estou à porta, e bato: se alguém ouvir a minha voz, e abrir a porta, entrarei em sua casa, e com ele cearei, e ele comigo”.
Isso é amiúde aplicado ao não salvo, mas sua referência principal é à Igreja. Descreve se Cristo buscando a companhia dos seus. Ele fala de “cear”, e na escritura isso sempre simboliza comunhão, da mesma forma que a Ceia do Senhor é uma oportunidade especial de comunhão entre o Salvador e o salvo. E observe nessa passagem que Cristo fala de uma dupla ceia — “entrarei em sua casa, e com ele cearei, e ele comigo”. Não somente é nosso inefável privilégio cear e comungar com ele, deleitarmo-nos nele, mas ele “ceia” conosco. Ele encontra em nossa comunhão algo com que alimentar seu
coração, algo que o alivia, e esse algo é a nossa devoção e o nosso amor. Sim, o Cristo de Deus ainda “tem sede”, sede pela afeição dos seus. Ó, não oferecerá você algo que a ele satisfaça? Responda então ao apelo dele: “Põe-me como selo sobre o teu coração” (Ct 8.6).


EXTRAÍDO DO LIVRO:
OS SETE BRADOS DO SALVADOR SOBRE A CRUZ
ARTHUR W PINK

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