Introdução
O estudo cuidadoso dos Salmos 3 e 4 revela que seus pensamentos
são estreitamente relacionados entre si, e que os dois foram escritos sob circunstâncias
idênticas. O título do Salmo 3 nos informa quais eram estas circunstâncias: Davi
o escreveu enquanto fugia do levante comandado pelo seu filho, Absalão, descrito
em 2 Samuel 15-18. No Salmo 3, descreve-se o crescente número dos adversários
(vv. 2,6), que não conseguiram, mesmo assim, perturbar a calma confiança em
Deus que Davi tinha. No Salmo 4.2, Davi se dirige aos rebeldes, convocando-os a
deixar sua rebelião. Sugere-se que os dois salmos foram escritos no mesmo dia, um
deles de manhã (vv 3,5) e o outro no fim do dia (vv. 4,8).
I - Um Cântico de Manhã em Tempos
Perigosos (SI 3)
O pensamento central desse salmo é que os números e as
forças físicas não determinam o decurso da história do mundo; é só da parte de
Deus que vêm a libertação e a vitória.
1. O perigo. “Senhor, como tem crescido o número dos meus
adversários! São numerosos os que se levantam contra mim” (v.l; cf. 2 Sm
18.31,32). Davi, profundamente entristecido, vê o grande número daqueles que
foram persuadidos a voltar-se contra ele. Os sofrimentos e aflições sempre
chegam em grandes grupos; é assim que o inimigo quer derrubar o crente com
repentina violência.
Os inimigos de Davi declararam, triunfantemente, que os seus
infortúnios eram o resultado da inimizade de Deus contra ele: “São muitos os
que dizem de mim: Não há em Deus salvação para ele” (v.2; cf. 2 Sm 16.8).
Talvez, até alguns dos amigos de Davi chegaram a perder a esperança, achando
que realmente Deus deixara de ampará-lo.
2. Confiança. “Porém tu, Senhor, és o meu escudo” (v.3). A
palavra aqui empregada para “escudo” se refere a um tipo de proteção que cerca
quase totalmente o soldado. Parecia que Davi estava exposto aos dardos de
falsos amigos, porém Deus era a sua proteção total; parecia que estava lançado
em total abatimento, porém Deus era a sua glória; os homens queriam afundá-lo,
porém Deus haveria de erguê-lo outra vez.
3. Oração. “Com a minha voz clamo ao Senhor, e ele do seu
santo monte me responde” (v.4). O “santo monte” era o monte Sião, onde permanecia
a Arca da Aliança. Ver 2 Samuel 15.25, contrastado com 1 Samuel 4.3-6. A
confiança de Davi não estava na Arca propriamente dita, mas em Deus cuja presença
era por ela simbolizada. O tempo do verbo no original nos dá a idéia de oração
contínua, habitual, incessante. Nota-se que Davi orou com a sua voz. Deus
escuta a oração silenciosa; todavia, muitas pessoas já aprenderam, através da
experiência, que oram melhor em alta voz, mesmo quando estão a sós.
4. Paz. “Deito-me e pego no sono; acordo, porque o Senhor me
sustenta” (v.5). O pronome é enfático em hebraico, como se Davi quisesse dizer:
“Eu mesmo, apesar de estar sendo caçado e amaldiçoado pelos meus inimigos, pessoalmente
senti comigo a bondade do Senhor nesta própria noite passada”. Em terreno
descoberto, sob a luz das estrelas, Davi dormiu com santa paz e despertou com
santa coragem, porque a mão de Deus era como travesseiro para ele.
5. Coragem. “Não tenho medo de milhares do povo que tomam
posição contra mim de todos os lados” (v.6). Deus libertou Davi do medo. Os
números nem sempre comprovam que a causa é justa; Absalão conseguiu uma grande turba
para segui-lo, mas Davi estava com Deus, e uma só pessoa, com Deus, forma a
maioria.
Feres nos queixos a todos os meus inimigos, e aos ímpios
quebra os dentes” (v.7). Essa confiança em Deus baseia-se em vitórias que Deus
lhe concedeu em ocasiões anteriores. Sua confiança, com tais antecedentes, se
aplica à situação imediata. Nessas metáforas, os ímpios são representados sob a
figura de animais selvagens, cujas armas são seus queixos e seus dentes. Quando
Davi era pastor de ovelhas, feria os ursos e os leões quando vinham contra as
ovelhas (1 Sm 17.34,35) e, da mesma maneira, ele tinha confiança em que Deus
trataria assim os que vinham contra ele com boca aberta e uivando ameaças.
6. Testemunho. “Do Senhor é a salvação” (v.8). Davi quis
dizer que a libertação e a vitória pertencem exclusivamente à vontade de Deus
(cf. Zc 4.6). Essa é a resposta de Davi às expressões de zombaria dos seus
inimigos (v.2).
7. Intercessão. O salmo termina com a oração que Davi proferiu
a favor dos seus súditos, tão tristemente desviados da lealdade. “E sobre o teu
povo a tua bênção”. Esse povo, mesmo caído em rebeldia, ainda pertence ao Senhor.
Assim Davi faz eco à oração de Moisés (Êx 32.31), e prenuncia a oração de
Cristo (Lc 23.34).
II - Uma Oração
Cantada de Tarde, em Tempos Perigosos (SI 4)
Esse salmo
ressalta a paz de coração sentida por aqueles que confiam totalmente em Deus.
1. Uma
oração por socorro. Davi baseia sua oração na justiça lhe prometida por Deus
(“Deus da minha justiça”) e na misericórdia que Deus já lhe concedera muitas
vezes no passado (“na angústia me tens aliviado”). Angústia é uma sensação que
estreita a garganta, o estômago, as veias e até reduz, quase paralisando a
nossa capacidade de pensar. O alívio vindo da parte de Deus nos deixa respirar livremente,
com largueza de mente e libertação da tensão. No sentido militar, Davi já passara
pela experiência de ficar cercado num lugar bem estreito, para então receber reforços
que o deixaram livre para movimentar-se. Assim, Deus tira seus fiéis das situações
apertadas da vida, dandoos alívio.
2.
Advertência contra a oposição. Davi, depois de falar com Deus, apela aos homens.
Deixamos o lugar silencioso da oração para entrar no campo da batalha. Davi
reconhece a força de seus opositores, mas também sabe que foram levados a um
grande erro. Pergunta-lhes por quanto tempo querem zombar da glória e da honra
pertencente ao rei, e deleitar-se em falsidades contra ele.
“Sabei,
porém...” (v. 3). Não querem aprender, e assim precisam ser informados mais
vezes. Davi os deixa saber que, por mais que queiram envergonhar a sua glória,
estão se opondo àquele que Deus amou, escolheu para Si e ungiu como rei sobre o
seu povo. Davi reconhece que, a cada passo, desde o aprisco das ovelhas até ao
trono de Israel, a vocação e a graça da parte de Deus lhe eram concedidas.
3. Um sábio
conselho (v. 4). Davi, agora, prossegue para oferecer aos homens sábios e
amorosos conselhos. Não quer que as suas fúrias os levem a pecar contra Deus. A
rebelião contra a vontade de Deus tem seu fracasso garantido desde o início (v.
3), no entanto ainda há um prazo para a meditação e o arrependimento. A
cosnciência, muitas vezes desrespeitada durante as emoções e correrias do dia,
comumente começa suas melhores atividades, quando vamos dormir, ao fim do dia;
daí a admoestação: “Consultai no travesseiro o vosso coração, e sossegai”. Davi
quer que os inimigos meditem nas verdades declaradas por ele. As horas silenciosas
da noite trariam consigo pensamentos mais calmos e mais nobres.
4. Uma
exortação direta. “Oferecei sacrifícios de justiça (ou sacrifícios oferecidos
com coração puro e sincero), e confiai no Senhor”. Absalão e os seus partidários
poderiam oferecer sacrifícios no templo, mas não teriam valor algum, não sendo
oferecidos com propósitos dignos e por pessoas vivendo lealmente diante de
Deus. Davi ensina que os sacrifícios devem ser oferecidos com o espírito certo,
para então confiar-se diretamente em Deus e não meramente na oferenda e nas
cerimônias.
5. Uma
expressão de confiança. “Há muitos que dizem: Quem nos dará a conhecer o bem?”
(v. 6). Davi talvez está se referindo a alguns dos seus seguidores que ficaram
desanimados nos dias difíceis. As aparências eram contrárias às suas vitórias,
e estavam passando dificuldades na fuga. “Senhor, levanta sobre nós a luz do
teu rosto”. A face de Deus, mediante a fé, pode ser percebida por um precioso instante
de santa comunhão e basta para afugentar as sombras do pessimismo. Embora os
inimigos detenham copiosos suprimentos, Davi não gostaria de estar no lugar deles
(v. 7). O gozo espiritual que transborda do coração de Davi vale muito mais do
que quaisquer confortos e prazeres materiais.
Davi, com
toda a sua confiança em Deus, pode dizer: “Em paz me deito e logo pego no sono,
porque, Senhor, só tu me fazes repousar seguro” (v. 8). Apesar dos perigos que
o cercam, Davi adormece em paz, pois nenhuma preocupação ou ansiedade o deixa
virando de um lado para outro sem conseguir dormir. A segurança física, bem
como a paz de espírito, são dons que Davi recebe da parte de Deus.
III - Ensinamentos Práticos
1. O sono
dos justos (SI 4.8). Existe o sono da presunção, como o de Jonas que dormia
quando devia estar orando (Jn 1.5,6). Deus nos preserve deste tipo de sono!
Existe,
porém, o
sono da santa confiança e consciência tranqüila, ilustrado na experiência de
Jesus (Mt 8.24), de Pedro (At 12.6) e de Davi.
A proteção
da parte de Deus é a melhor segurança. Soldados armados guardavam o leito de
Salomão, todavia não creiamos que dormia melhor do que seu pai, Davi, quando
deitava no chão não muito longe de perigosos inimigos. Davi estava “a sós” com
Deus, e “somente” Deus era proteção mais que suficiente. Uma boa consciência
nos ajuda a dormir em quaisquer circunstâncias; muitas insônias se devem a
mentes perturbadas, que não confiam em Deus. Nenhum travesseiro é tão confortável
como as promessas de Deus; nenhum cobertor é mais quente do que a certeza da
nossa salvação por Jesus Cristo.
2. A fé que
não teme os inimigos. “Não tenho medo de milhares do povo que tomam posição
contra mim de todos os lados”. Davi não menospreza o número ou a capacidade dos
seus inimigos. E um realista que enfrenta os fatos; porém, como piedoso santo
de Deus, também reconhece o maior fato de todos - a ajuda da parte de Deus.
Muitas vezes
os crentes chegam a circunstâncias assim: não percebem nenhuma via de escape, e
tudo parece sombrio. Sentem-se com vontade de dizerem: “Tudo está contra mim”.
Precisamos de muita fé e confiança para dizermos, em tais circunstâncias: “Não
tenho medo”. Qualquer um pode se imaginar herói em tempos de paz, mas é o campo
da batalha o divulgador do verdadeiro guerreiro.
3. Humilde
diante de Deus, corajoso diante dos homens. No Salmo 4.1, Davi fala a Deus
antes de falar aos homens. Essa é a ordem certa. Teríamos mais coragem
espiritual em nossas conversas com nosso próximo se tivéssemos mais tempo de
conversa com Deus. Quem tem santa confiança em sua comunhão com Deus não
tremerá diante dos homens.
4. As asas
da oração. Quando vemos a iniqüidade se multiplicando ao nosso redor, sentimos
uma profunda depressão; a oposição e a perseguição podem nos desencorajar. Davi
foi tentado a se entregar a tais sentimentos, porém a Oração o capacitou a
levantar vôo acima da violência e da descrença dos homens, aproximando-se do
céu. Nada voa tão bem como a oração, pois ela ergue a alma humana com grande
velocidade para uma posição muito acima dos perigos e até dos prazeres existentes
neste mundo. Assim como o avião voa acima das nuvens de tempestade, assim nós, nas
asas da oração, podemos voar acima das decepções. Ajoelhemo-nos em nossa fraqueza,
e depois nos levantemos revestidos de poder. Fazemos a maior violência contra nós
mesmos quando nos privamos desse meio de graça.
5. Deus
cuida dos seus filhos. Os que têm fé em Cristo são os que foram escolhidos para
a salvação, eleitos para herdar o Reino de Deus. Já que Ele nos escolheu para
nos
salvar,
certamente não deixará de nos escutar a oração. Com tais pensamentos, Davi se
encorajou diante da oposição de homens ímpios.
Essa verdade
continua em pé. Aqueles que procuram derrotar o povo de Deus estão lutando
contra Deus e o destino. “Porventura Deus não vingará os seus próprios eleitos,
que a Ele clamam de dia e de noite?” (Ver At 5.38,39; 9.4; 23.9). “Se Deus é
por nós, quem será contra nós?”
6. Fé produz
otimistas. Quando surgem as dificuldades, somos tentados a murmurar: “Quem nos
dará a conhecer o bem?” Esse tipo de pessimismo (2 Rs 7.1,2; Jo 20.24-29) nos
priva das bênçãos que Deus quer derramar sobre nós. O crente não deve ser influenciado
por aquilo que vê ao seu redor, mas por aquilo que crê. Um pouco de fé nos transforma
em otimistas.
7. A alegria
no Senhor (v. 7). Deus, para evitar que as riquezas sejam consideradas más em
si mesmas, dá um pouco delas aos justos. E, para evitar que sejam consideradas o
bem supremo, muitas vezes concede-as aos ímpios. As verdadeiras riquezas espirituais
e eternas, porém, são a propriedade exclusiva dos fiéis. O próprio Deus é o
maior tesouro do universo. É melhor ter a comunhão com Ele, e não possuir
outras coisas, do que possuir tudo, sem Ele. Devemos sentir muita pena daqueles
cuja paz e felicidade dependem da sua prosperidade material, e cujo único
desejo é a fartura de bens.
Nenhum comentário:
Postar um comentário