O Paganismo e o seu culto
"Os lugares tenebrosos da terra estão cheios de moradas
de crueldade", Salmo 74.20.
O assunto do presente volume apresenta-nos a época
chamada "o período de Augusto". Essa época, começou com o reinado de
César Augusto, nascido mais ou menos no ano 63 a.C. e compreende o período dos
seus sucessores imediatos. Ela foi notável pela florescente condição da literatura
e do saber e pelo próspero cultivo das belas artes.
O grande Júlio César, tio e
predecessor de Augusto, tinha pelas armas vitoriosas tornado tributárias de
Roma todas as nações circunvizinhas. Assim, o Império Romano, quando Augusto
subiu ao trono, compreendia quase todo o mundo então conhecido.
A religião dessas nações, com
a única exceção dos judeus, era o paganismo, numa ou noutra forma, que era
também a religião da Roma Imperial. Com as suas armas, Roma levava seus deuses
a outras nações e promovia-lhes culto. Por conveniência política, Roma adotava deuses
de outras nações pagas, admitindo-os no seu Panteão. A índia longínqua, a
Citia, a África Meridional e a China, ainda que não conquistadas, e por
conseguinte não tributárias de Roma, eram também pagas. Não obstante as
divindades adoradas nesses países serem diferentes em nome, os seus atributos e
caracteres podiam facilmente identificar-se com os adorados no Império Romano.
O sistema pagão era
Politeísta, isto é, eles adoravam muitos deuses. Geralmente, essas divindades
eram representadas por qualquer forma humana, tais como Júpiter, rei do
Olimpo, e muitos outros ídolos cujos nomes são, sem dúvida, familiares - Marte,
Mercúrio, Netuno, Baco, Vulcano, Juno, Vênus e outros, que eram os deuses ou
advogados da guerra, do roubo, do deboche, da embriaguez. Outros
personificavam virtudes cívicas e domésticas.
Os deuses de Roma, os reis
divinizados juntamente com deuses estrangeiros (tais como Isis, deusa dos egípcios)
e com divindades menores ou semideuses, que presidiam a países, cidades, rios,
estações e colheitas, elevavam a centenas a lista dos "muitos senhores e
muitos deuses", a quem, na época a que me refiro, o mundo civilizado rendia
homenagem e prestava culto.
Poder-se-iam citar inumeráveis
autores para provar o número e a inutilidade de tais divindades. Um escritor
dessa época observa satiricamente: "É mais fácil achar um deus do que um
homem "(1)• Lívio, falando de Atenas, capital da
Grécia, diz que estava cheia de imagens de deuses e de homens enfeitados com
toda a espécie de material e com toda a perícia da arte (2). Outro
escritor declara: "Por todos os lados há altares, vítimas, templos e
festas" (3).
Mas os romanos não adoravam
somente os deuses que tinham inventado. Na sua ânsia por um Deus verdadeiro,
"se porventura o pudessem achar", e tendo consciência de que devia
haver algum mais digno da sua estima do que as vis criações da sua corrupta imaginação, ajuntaram aos
milhares de altares mais um: o altar ao DEUS DESCONHECIDO.
Este fato nos é familiar pela
narração de Lucas nos Atos dos Apóstolos, e inteiramente confirmado por escritores
pagãos O espírito do apóstolo Paulo sentia-se comovido em si mesmo, vendo a
cidade de Atenas "toda entregue à idolatria" (5), e no
seu discurso no Areópago Ateniense, disse: "Indo passando, e vendo os
vossos simulacros, achei também um altar em que se achava esta letra: AO DEUS
DESCONHECIDO" (6).
O que havia em Atenas havia
também em Roma, a capital do mundo, pois nos é dito, pela autoridade de
Minúcio Félix, que construíam altares a divindades desconhecidas. Tal era
então a natureza politeísta do sistema pagão.
Falemos agora um pouco do
caráter destes deuses, e da natureza do culto que lhes era prestado. Não há
crime, por mais abominável que seja, que não lhes pudesse ser imputado. O seu
caráter pode resumir-se nestes versos do poeta Pope:
"Deuses injustos, mutáveis, iracundos, Só na
vingança e podridão fecundos".
O que eram os deuses, era o
sistema com o qual estavam identificados; eram os efeitos sobre seus adeptos.
Julguemos esse sistema pelas próprias bocas dos pagãos:
Aristóteles (7)
aconselha que as estátuas e pinturas dos deuses não deveriam exibir cenas
indecentes, exceto nos templos das divindades que presidiam a sensualidade.
Como não deveriam estar as coisas, para ser necessário tal conselho? E qual o
estado de espírito de um pagão esclarecido que podia justificar tal exceção!
Petrônio informa-nos que os
templos eram freqüentados, os altares eram enfeitados e as orações eram
oferecidas aos deuses, para que eles tornassem mais agradáveis os vícios
desnaturados dos seus venerados.
O honesto Sêneca (8),
revoltado contra o que presenciava ao redor de si, exclama: "Quão grande
é a loucura dos homens! Balbuciam as mais abomináveis orações, e, se alguém se
aproxima, calam-se logo; o que um homem não deveria ouvir eles não se
envergonhavam de dizer aos deuses". Ainda mais: "Se alguém
considera o que eles fazem e ao que se sujeitam, em vez da decência, encontrará
a indecência; em vez da honra, a indignidade; em vez da razão, a
insensatez".
E, para completar o testemunho
dos pagãos, quanto ao caráter e efeitos do seu sistema, Platão declara: "0
homem tem-se tornado mais baixo que o mais vil dos animais".
Bem podia o apóstolo Paulo,
escrevendo aos romanos durante o período a que nos referimos, usar a terrível
linguagem contida no lº capítulo da Epístola, pois tudo é
confirmado pelo testemunho de escritores pagãos. Bem podia Paulo atribuir tudo
ao sistema religioso de Roma e ao caráter de seus deuses, e afirmar que era por
isso que mudavam a glória do Deus incorruptível em semelhança e figura do
homem corruptível, de aves, de quadrúpedes e de serpentes; pelo que os entregou
Deus aos desejos dos seus corações, à imundície, pois não deram provas de que
tivessem o conhecimento de Deus. Foram entregues por Deus a um sentimento
depravado, para que fizessem coisas que não convém; cheios de iniqüidade, de
malícia, de imoralidade, de avareza, de maldade, de inveja, de contendas, de
engano, de malignidade; tornaram-se homicidas, mexeriqueiros, murmuradores,
aborrecidos de Deus, contumeliosos, soberbos, altivos, inventores de males,
desobedientes a seus pais, insipientes, imodestos, sem benevolência, sem
palavra, sem misericórdia (9).
Bastaria citar este trecho de
Paulo para provar a nossa tese. Porém, como pode ser que haja alguns que não
inves tigaram a irrespondível evidência em que se baseia a
autenticidade dos escritos inspirados, julgamos útil apresentar aos leitores
o testemunho combinado, o pagão e o cristão. Pedimos lerem com atenção o
capítulo citado; ajudará a apreciar o contraste que será apresentado num
capítulo subseqüente.
Quanto ao caráter dos antigos
ídolos pagãos, fora dos limites do Império Romano, não temos tantas
informações; existe, porém, evidência suficiente para provar que o paganismo
oriental era tão vil e degradante como o da Grécia e de Roma, sem se ter até
agora alterado profundamente. Podemos estudá-lo pela observação atual. Citarei
somente uma passagem: um documento público apresentado ao Parlamento por um magistrado de Bengala Meridional, na índia (,0), fala da adoração da
deusa Kalé, dizendo: "O assassino, o ladrão e a prostituta, todos aspiram
a propiciar um deus cujo culto seja a obscenidade e que se deleite no sangue do
homem e dos animais, e a quem possam implorar auxílio para cometerem os seus
crimes".
Havia, sem dúvida, exceções a esta regra quanto aos
atributos dos deuses pagãos. Algumas daquelas divindades personificavam
virtudes; havia homens melhores do que o sistema que prevalecia. As exceções
eram raras e sobressaem nos anais da história com tanto brilho quanto à sua
raridade.
Estes homens excepcionais eram
virtuosos em razão da luz ainda não extinta na sua natureza decaída; eram virtuosos
apesar do seu sistema religioso e não por causa dele. Dionísio de Halicarnasso
diz: "Há somente uns poucos que chegaram a ser mestres de filosofia; por outro
lado, a grande e ignorante massa popular está mais propensa a encarar essas
narrativas (as vidas dos deuses) pelo lado pior e a desprezar os deuses como
seres que se transformam nas mais crassas abominações, ou a não temer praticar
as maiores baixezas, crendo que os deuses as praticam também” (11).
Tais eram os deuses do paganismo e tais os efeitos
naturais do seu caráter sobre os seus devotos.
Observamos que o sistema pagão
como o judaico era sacerdotal, administrado por um sacerdócio. Entre os pagãos, o
sacerdote, que podia ser homem ou mulher, era o mediador entre o povo e as
divindades: a elas oferecia orações e fazia sacrifícios. Em nome delas
interpretava sinais, oferecia presságios e revelava a vontade dos deuses, além
de exercer certas funções judiciais.
O culto consistia na prática
de certos atos
ou ritos exteriores. Era, por outras palavras, exclusivamente externo ou
cerimonial. Não
existe uma única prova de que ensinassem a moral (12). Os ritos
compreendiam sacrifícios, ofertas, orações, incensos, peregrinações a lugares
santos ou relicários; procissões em honra dos deuses; jejuns, abstinências,
mortificações, penitências, observância de festas e freqüentemente práticas
viciosas, como as acima referidas.
Esses ritos eram custosos,
exigindo sacrifício da parte dos que os seguiam, conforme a posição de cada um.
Os seus benefícios aproveitavam mais aos ricos que aos pobres. Não só eram, na
maioria das vezes, abominavelmente impuros, mas também barbaramente cruéis.
Acerca da
imoralidade das cerimônias é impossível falar. Mas
mesmo que fossem descritos, não seriam acreditadas, se não fizessem longas
citações de historiadores autorizados.
Afirme-se desde já que o
Cristianismo baniu o conhecimento dos vícios cometidos publicamente nessa
época, vícios que não somente não produziam o descrédito daqueles que os
praticavam, mas que faziam parte dos seus ritos religiosos e que, em alguns
casos, eram obrigatórios e noutros, tidos como honrosos e meritórios. É uma
bênção serem agora mortas as línguas em que essas coisas foram escritas! Mas,
não devemos esquecer as lições que elas nos ensinam.
Dissemos que os ritos pagãos eram muitas vezes barbaramente cruéis.
Referimo-nos principalmente à prática de oferecer sacrifícios humanos: e essa prática, segundo a
história antiga, parece ter sido universal. Não é conhecida a data em que essa
abominação foi introduzida, mas, sem dúvida, foi pouco depois do princípio do
mundo. Os cananeus, há 3300 anos, a praticavam, oferecendo seus filhos aos
ídolos de Canaã,especialmente a Moloque (13). Foi evidentemente este
um dos crimes pelos quais o Todo-poderoso mandou destruir aquele povo:
"Não darás nenhum de teus filhos para ser consagrado ao ídolo Moloque...
porque todas estas execrações cometeram os habitantes desta terra, que foram
antes de vós, e com elas a contaminaram. Vede, pois, não suceda... como ela vomitou a gente que
houve antes de vós, vos vomite também a vós, se fizerdes outro tanto" (14).
É necessário explicar que a expressão usada nas nossas Bíblias,
"consagrar os filhos ao ídolo Moloque quer dizer queimar as crianças em
honra dessa divindade (15). Sobre este ponto não há dúvida. Moloque,
Moleque, Malcom ou Milcom, como chamado, era o planeta Saturno divinizado. O
seu culto existia principalmente entre os primitivos habitantes de Canaã, e
entre os amonitas, fenícios e cartagineses O ídolo consistia numa estátua de latão, sob a forma
de homem com cabeça de touro; tinha os braços estendidos para a frente, um
pouco abaixados. Os pais colocavam seus filhos nas mãos do ídolo. Dali a
criança caía numa fornalha onde morria queimada. Durante a cerimônia, tocavam
tambores e trombetas para abafar os gritos dos inocentes. Algumas vezes o
ídolo era oco. Aquecido até ao rubro por fogo colocado dentro, as crianças eram
então queimadas nas mãos em brasa da estátua.
Apesar de ter o Todo-poderoso
proibido expressamente esses crimes, os judeus praticaram-no por vezes, especialmente
nos reinados de Acaz e de Manasses. Erigiram o ídolo no vale ao sul de
Jerusalém, chamado Enon, mais tarde denominado Tofete ou Tambores em
conseqüência da prática dessa abominação, e em referência aos tambores que
tocavam para sufocar os gritos das vítimas (16). Mais tarde, o lugar
veio a ser tão aborrecido pelos judeus, que deram a ele o nome de
"Ge-hinnon" ou Geena, lugar de castigo na vida futura, isto é, o
Inferno. De maneira que, na opinião destes judeus, bastava praticar tais
abominações pagas para fazer da terra um inferno (17).
Continuemos a indagar da
prática de sacrifícios
humanos. Principiemos
pelos gregos civilizados e filósofos. Agamenon, rei de Micenas, ofereceu sua
filha Efigênia, a fim de obter uma brisa favorável para poder atravessar um mar
mais estreito que o Canal da Mancha; e, na sua volta, ainda ofereceu outro
sacrifício humano. Os atenienses e os massalianos ofereciam anualmente um homem
a Netuno. Menelau, rei de Esparta, sendo detido por ventos contrários,
ofereceu duas crianças egípcias. A história relata-nos que muitos dos estados
gregos ofereciam vítimas humanas antes de empreenderem uma expedição ou guerra.
Em Rodes ofereciam um homem a Crono, deus semelhante a Moloque, no dia 6 de
julho de cada ano; em Salamina, ofereciam também um homem em março de cada
ano; em Chios e Tenedos despedaçavam anualmente uma vítima humana. Na Ática, Ereteu sacrificou sua filha;
Aristides sacrificou três sobrinhos do rei da Pérsia; Temístocles sacrificou
várias pessoas nobres. Note bem! estes homens não eram selvagens, mas tidos em
seus dias como sábios, justos e bons.
Na Tessália, ofereciam-se
sacrifícios humanos; os palagianos, em tempo de escassez, ofereciam a décima parte de seus filhos; na Crimeia e no Tauro, cada naufrágio estrangeiro, em vez de ser recebido com
hospitalidade, era sacrificado a Diana. 0 templo desta deusa em Arícia, era
sempre servido por um sacerdote, que tinha matado o seu antecessor; e os
lacedemônios anualmente ofereciam vítimas humanas a Diana até o tempo de
Licurgo, que mudou esse costume pelo açoite. No entanto, as crianças eram
muitas vezes flageladas até morrer.
Passemos agora dos gregos e
seus vizinhos para o império de Roma. A história nos informa que, embora não
tão freqüentemente, houve sacrifícios humanos por muitos e muitos anos.
Em Roma, era costume
sacrificar anualmente trinta homens, atirando-os ao Tibre, para obter o
progresso da cidade. Tito Lívio menciona que dois homens e duas mulheres
foram enterrados vivos para evitar calamidades públicas. Plutarco descreve um
sacrifício semelhante; e Caio Mário ofereceu sua filha Calpúrnia para ser bem
sucedido numa expedição contra os címbricos. É verdade que no ano 96 a.C. foi
publicada uma lei para sustar essas práticas, o que prova que o costume
existia. Além disso, o sacerdote pagão mostrava-se muitas vezes mais forte que
o magistrado civil, de modo que, embora a lei tivesse sido promulgada, o
costume não foi abolido. Muitos casos de sacrifícios humanos são mencionados
até ao ano 300 da nossa era -quase 400 anos depois da publicação da lei (18).
Da Grécia e de Roma passemos a
outras nações antigas, e indaguemos quais eram a este respeito as praticas do
paganismo. Entre os habitantes de Tiro, o rei oferecia o filho para obter
prosperidade; pela Escritura Sagrada sabemos que os moabitas também tinham tal costume. Na ocasião
da derrota do rei de Moabe pelos exércitos aliados de Judá e Israel, o rei de
Moabe ofereceu em sacrifício seu filho primogênito, que havia de reinar depois
dele. No tempo do Novo Testamento, Pilatos misturou o sangue de certos galileus
com os seus sacrifícios.
Os cartagineses seguiram esse
costume. Em ocasiões extraordinárias, ofereciam multidões de vítimas humanas:
durante uma batalha entre sicilianos e cartagineses, estes, sob o comando de
Amílcar, ficaram no campo oferecendo sacrifícios às divindades do seu país, e
consumindo sobre uma grande fogueira os corpos de numerosas vítimas (19).
Outra vez, quando Agatocles estava para sitiar Cartago, os seus habitantes,
temendo que suas desgraças fossem por causa da ira de Saturno, por lhe terem
oferecido somente filhos de escravos e estrangeiros, em vez de crianças nobres,
sacrificaram duzentas crianças das melhores famílias, a fim de propiciar a
divindade ofendida. Trezentos cidadãos imolaram-se voluntariamente na mesma
ocasião (20). Doutra vez, para celebrar uma vitória, o mesmo povo
imolou os mais perfeitos e mais formosos dos seus cativos, e as chamas da
fogueira foram tão grandes que lhes incendiaram o acampamento (21)
Tertuliano, escritor cristão, diz que sacrifícios humanos eram comuns na
Arcádia e em Cartago nos seus dias, isto é, no terceiro século da era cristã.
Agora
voltemos ao Oriente.
No Egito havia sacrifícios de
vítimas humanas, cujas cinzas eram espalhadas pelas terras para se conseguir a
fertilidade do solo; os escolhidos eram homens de cabelo ruivo. Durante a
dinastia dos Hiksos, conta Maneto que diariamente eram sacrificadas três
pessoas, isto é, mais de mil por ano. Entre os persas, sabemos que existia o mesmo costume.
Quando Anestris, mulher de Xerxes, chegou à idade de 50 anos, como ação de graças aos deuses (22),
enterraram vivas
14 crianças.
Quanto aos assírios, não possuímos
ainda informação suficiente acerca da sua mitologia, para poder dizer com
certeza que os sacrifícios humanos formavam uma parte do seu sistema religioso,
mas as recentes descobertas em Nínive, e o desvendamento da linguagem escrita
dos assírios pelo coronel Rawlinson e outros, indicam-nos que eles adoravam
deuses aos quais, em outros países, ofereciam sacrifícios humanos (23).
É evidente que os assírios não faziam exceção à regra quanto à crueldade do
paganismo, pois das decorações de seus palácios reais fazem parte imagens
representando o esfolar pessoas vivas e outros atos atrozes de crueldade.
Falando dos indus e chineses,
será mais útil citar as suas práticas recentes, visto como poucos dos seus
antigos escritos chegaram até nós. Dos indus, mesmo sob o domínio europeu,
consta de documentos oficiais - os registros públicos de Bengala - que, entre
os anos de 1815 e 1824, 5997 viúvas foram queimadas vivas. Tal crueldade ainda
se pratica em lugares muito interiorizados. Também era comum afogar e enterrar
pessoas vivas. Os chineses, em Tonkin, sacrificavam crianças cortando-as ao
meio ou envenenando-as; e em Laus, quando fundavam um templo, a obra era
cimentada com o sangue do primeiro estrangeiro que por ali passasse. Também
atiravam as crianças aos rios como sacrifício oferecido às águas.
Voltemos agora para o norte da
Europa e vejamos quais os costumes e práticas dos pagãos. Raras são as fontes
de onde podemos obter fatos, mas temos o suficiente para tirarmos provas
bastantes das práticas pagas em toda a sua hediondez. Harold, rei saxônio,
matou dois de seus filhos para obter uma tempestade que fizesse naufragar a
esquadra dos dinamarqueses. Na Rússia, ainda no século X, um
homem foi escolhido à sorte e sacrificado, a fim de aplacar a ira dos deuses.
Na Zelândia, sacrificavam anualmente 99 pessoas ao deus Swan-to-wite. Na Dinamarca, era sacrificado
o mesmo número de homens. Os escandinavos sacrificavam todos os cativos a
Odim. Os sacerdotes eslavos não somente matavam vítimas humanas como também
bebiam o seu sangue.
O modo de destruir a vida
diferia, mas o princípio era o mesmo e parece ter sido universal. Os gauleses
matavam com um golpe de machado, dado de tal maneira que a vítima ainda
ficasse viva, para obterem presságios por meio das suas convulsões. Os celtas
colocavam as suas vítimas num altar e abriam-lhes o peito com uma espada; os
címbricos estripavam as vítimas; os noruegueses tiravam-lhes fora os miolos com
o jugo de um boi. Os islandeses crivavam as vítimas de setas. Na Bretanha, os
druídas faziam uma figura de vime de forma humana, que enchiam de vítimas e
deitavam-lhe fogo, como descreve César: "Alguns usam imagens enormes,
cujos membros são feitos de vime e cheios de criaturas vivas; pondo-lhes fogo,
as chamas destroem essas criaturas... Quando não há número suficiente de
criminosos, não têm escrúpulo de torturar os inocentes" (24).
Os pormenores não são só
revoltantes, mas enfadonhos. Contudo, não se pode considerar completa esta
parte do assunto sem lançar a vista sobre países que podem ser classificados
como da antigüidade, não obstante quase nada sabermos da sua história antiga,
porque a sua religião é, ou era até pouco tempo, paga em todo o sentido. Esses
estão, especialmente na América, na África e nas ilhas do Pacífico. No México
parece que a brutalidade de sacrificar vítimas humanas chegou ao máximo. Nenhum
autor calcula o número anual de vítimas em menos de 20.000 e alguns o elevam a
50.000. Em ocasiões solenes, o número de sacrificados chegava a ser pavoroso.
Na dedicação do grande templo Huitzilopolchli, no ano de 1486, os prisioneiros, que já de longa data tinham sido
reservados para esse fim, dispostos em fileiras, formavam uma linha de cerca
de duas milhas de comprimento. A cerimônia durou alguns dias, e diz-se que
70.000 homens foram mortos. Os companheiros de Cortez, o conquistador do México,
contaram num dos templos 136.000 caveiras.
Quando perguntaram a Montezuma, último imperador do
México, por que razão consentia que a república de Tlascala mantivesse a sua
independência, respondeu que era para que lhe fornecesse vítimas para os
deuses" (25). No tempo da seca, para propiciar Theloc, deus da chuva, as crianças
eram sacrificadas vestidas de roupas finas, e adornadas de flores de primavera.
Escritores narram que os gritos dessas inocentes, quando levadas em liteiras
para o lugar da matança, comoveriam os corações mais duros. Mas não podiam
comover os corações duros dos sacerdotes pagãos, que, como os devotos de
Moloque, sufocavam os gritos das criancinhas com ruidosas músicas e cantos. Estas
vítimas inocentes eram geralmente compradas pelos sacerdotes a seus pais
pobres. E pais havia que vendiam os seus filhos! Isto era a repetição do antigo
paganismo (26). "Sem benevolência, sem misericórdia", é realmente a justa
qualificação dada pelo apóstolo inspirado. A tribo Fanti e muitas outras da
África ofereciam sacrifícios humanos em cada lua nova. Em Assanti, a adoração
de tubarões e cobras era acompanhada de sacrifícios humanos em suas formas mais
pavorosas (27). Um rei ali deu instruções para o morticínio de 6.000
escravos no seu funeral, e o seu testamento hediondo foi executado. Essa
prática existia em todas as ilhas do Pacífico. Em Otaeite, grande número de
pessoas foram mortas, depois de lhes tirarem os olhos, para os oferecerem ao
rei. Nas ilhas Marquesas, principalmente nas ilhas Harvey e Pallisay, e nas da Nova Zelândia, não
somente sacrificavam os seus inimigos, mas devoravam-nos.
Não forma parte deste livro
indagar por que a prática de sacrifícios, particularmente de sacrifícios
humanos, se generalizou. Basta observar que não há prática alguma do paganismo
para a qual não se encontre um fundamento de verdade. Assim, os sacrifícios
oferecidos pelos judeus ou pelos pagãos, evidenciavam três grandes verdades. Primeira, que o homem tinha ofendido o
seu Deus; segunda,
que alguma
expiação devia ser oferecida, ou alguma compensação feita para satisfazer a
lei ofendida; terceira, que bastaria uma expiação substitutiva - isto é, que uma vítima
inocente fosse oferecida em lugar do pecador.
Estas idéias parecem ter
existido universalmente; não há praticamente região no mundo onde não se
encontrem. Sem dúvida, derivam da revelação divina feita ao homem no princípio
da sua existência, como o método destinado a efetuar a reconciliação entre o
homem decaído e o seu Criador ofendido. A verdade, porém, corrompeu-se, mas a
consciência humana despertando incessantemente seus temores criminosos, evitou
que a idéia se perdesse de todo. Sentindo a necessidade de um sacrifício de
valor, e perdendo de vista o sacrifício perfeito que Deus prometera preparar,
o homem buscou no sacrifício da vida humana um sacrifício adequado à sua culpa,
e, assim, espalhou a prática de sacrificar "o fruto do corpo pelo pecado
da alma".
Não é, contudo, a origem das
idéias pagas, mas o estado do mundo pagão, que estamos desenvolvendo. Se tais
eram os ritos religiosos, qual seria a condição social e moral dos pagãos no
período que estamos considerando?! A voz da história, se a ouvirmos
atentamente, mesmo descontando os excessos das hipérboles e as inexatidões
históricas, assegura-nos que a condição social do povo era extremamente
miserável e rebaixada. O infanticídio predominava quase tão universalmente como
as práticas a que aludimos. Não somente em países bárbaros, mas na culta Grécia
e na civilizada Roma.
Entre os atenienses e
gauleses, as leis autorizavam os pais a destruírem os filhos. Em Esparta, as
leis de Licurgo obrigavam o pai a levar os filhos perante uma comissão
examinadora; se esta os achasse desfigurados ou fracos, eram lançados numa caverna profunda, perto do monte Taigeto.
Aristóteles diz: "É necessário expor (isto é, deixar morrer) crianças
fracas e doentes, para evitar um aumento demasiado rápido de cidadãos".
Platão, na sua República, diz que as crianças fracas não devem ver a luz. Também
em Roma, as leis davam autoridade aos pais para tirarem a vida de seus filhos.
Erixo e Ário, cidadãos romanos, mataram cada um seu filho a pancadas (28)e
Tertuliano afirma que os romanos expunham seus filhos, à morte, afogando-os ou
deixando-os perecer à fome ou, devorados pelos cães. Cícero e Sêneca falam
dessas práticas; tratam-nas, porém, como corriqueiras: não as censuram nem as
comentam. Terêncio descreve um certo Cremes como "um homem de grande
benevolência" e no entanto apresenta-o ordenando à sua mulher que matasse
seu filho recém-nascido. E mostra que Cremes encolerizou-se por ter a esposa
encarregado outra pessoa de executar o ato (29).
Citemos o testemunho do
escritor Gibeon. Este testemunho é tanto mais valioso quanto é certo que ele
se esforçou por pintar o paganismo com belas cores para prejuízo do
cristianismo. Diz: "O costume de matar crianças era o vício obstinado e predominante
da antigüidade; às vezes era imposto, outras permitido e sempre impunemente,
ainda mesmo em nações que nunca admitiram as idéias romanas do poder paternal".
Os poetas dramáticos, que às vezes apelam para o coração humano, representam
com indiferença aquele costume popular, que era seguido por motivos de economia
(™).
Vejamos agora qual era a
condição social da mulher no paganismo. Em toda a parte a mulher era
considerada como inferior ao homem. No Hindustão, na China e nos mares do Sul,
por essa razão, ainda há pouco destruíam crianças do sexo feminino. Em Bengala
suspendiam as meninas recém-nascidas nos ramos das árvores em cestas, e assim
pereciam comidas pelas formigas, moscas e aves
de rapina. Tal era a condição do sexo feminino na
infância. Se sobrevivesse a mulher era levada a um ínfimo ponto. Aristóteles
escreve: "As mulheres são uma espécie de monstros - o começo da
degeneração da nossa natureza".
A poligamia, isto é, o costume de ter muitas mulheres
a um tempo, ainda que proibida pelas leis de alguns países, era quase
universal. Não há necessidade de demonstrar que tal prática é evidentemente
contrária à natureza, que dá igualdade quase absoluta a ambos os sexos. Nem tão
pouco é preciso dizer que é uma prática degradante para a mulher, pois trata-a
como se fosse incapaz da afeição que tanto distingue o seu sexo.
A mulher era definida pelas
leis de Roma, não como pessoa, mas como coisa e, se faltasse o título da sua posse, poderia
reclamar-se como quaisquer móveis (31)
- Era
tratada como escrava do homem e não como sua companheira e amiga; era
comprada, vendida, trocada, desposada, casada, divorciada e separada de seus
filhos, sem seu consentimento; muitas vezes sem misericórdia; à vontade do
capricho de seu senhor. Ele podia legalmente matá-la, ainda que fosse por ter
provado do seu vinho ou por ter usado suas chaves (32).
Não deixará de ser proveitoso
prestar atenção ao testemunho vivo de um que estudou a condição da mulher debaixo
da influência do paganismo moderno "Verdadeiramente", disse o Dr.
Vidal, "a vida de uma mulher indiana, desde o berço até a sepultura é de
miséria. Quem não tem ouvido a narração triste e comovedora da menina, criança
e já desposada com um homem que não tem interesse por ela e sobre quem ela
somente lança olhares de terror?! Desde o dia do seu infantil casamento, é
obrigada a ser uma pobre escrava, vil e deprimida, servindo ao seu senhor com
submissão e silêncio; cumprindo toda a vontade dele, sem ouvir uma única
palavra de agradecimento; sem conforto, e, naquele dia terrível, quando a morte
arrebatar o seu tirano, está obrigada a ser queimada com ele, como holocausto vivo; ou a ser
enterrada viva ao seu lado na sepultura! (34).
"Ou, ainda: Não ouvimos
nós também falar das filhas da índia, que, pondo de lado o sentimento e
ternura femininas, seguem o culto satânico de Peyadi, com todas as suas horríveis
práticas, bebendo o sangue das vítimas até a intoxicação e dançando em roda em
louco frenesim, até caírem ao chão exaustas? Desgraçadas, são vítimas
das suas próprias imaginações ferozes e terríveis e daquele mau espírito a quem
se dedicam. Quando uma delas é interrogada a respeito da sua alma, a resposta
ignara é: - Minha alma! Que alma tenho eu? Eu sou apenas uma mulher.
"Voltemo-nos para o
Oriente, para as multidões compactas da China. Como se trata aí a mulher? Oh!
que história de pesar revela esse simples fato que descobrimos logo à chegada;
que nos impressiona desde o momento em que pomos os pés em terra! Referimo-nos
ao terrível costume do infanticídio feminino, em razão do qual a menina
recém-nascida é logo condenada à morte, assassinada sem compaixão, como se isso
fosse uma necessidade inevitável devido ao seu sexo! Na China é considerado uma
desgraça o ser pai de uma menina. Onde metade das meninas são vítimas desse terrível
costume, o que se pode esperar com referência à sorte das sobreviventes?! Assim
rebaixada, desprezada, considerada imprópria para a vida, uma vergonha e
ignomínia para a família, da qual ela deveria ser o ornato e a honra, a chinesa
bem pode ser descrita juntando os seus lamentos aos das suas irmãs maometanas
da índia". (*)
Poderíamos enfadar os leitores
com narrações de crueldade e derramamento de sangue, frutos da noção paga da posição social da mulher.
Porém cremos que já foi dito o bastante para provar que a mulher pelo menos,
tem ganho muito desde que foi libertada, pelo cristianismo, da influência do
paganismo. Talvez imaginem que só temos falado da miséria das crianças e das
mulheres sob a influência do paganismo, mas também temos algo a dizer quanto à condição social e moral da
sociedade. Isso será o assunto no capítulo seguinte.
EXTRAÍDO DO LIVRO:
AS CATACUMBAS DE ROMA - BENJAMIM SCCOT
Nenhum comentário:
Postar um comentário