7. a palavra de contentamento
"E, clamando Jesus com
grande voz,
disse: Pai, nas tuas mãos
entrego o meu espírito.
E,
havendo dito isto, expirou"
Lucas 23.46
“E, CLAMANDO JESUS com grande voz, disse:
Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito. E, havendo dito isto, expirou"
(Lc 23.46). Essas palavras postas diante de nós foram o último ato do Salvador
antes de expirar. Foi um ato de contentamento, de fé, de confiança e amor. A
pessoa a quem ele confiou o precioso tesouro de seu espírito foi seu próprio
Pai. Pai é um título que traz encorajamento e segurança: um filho, desde que
seja querido, bem pode confiar qualquer preocupação nas mãos de um pai, em
especial um tal Filho nas mãos de um tal Pai. Aquilo que foi entregue nas mãos
do Pai foi o seu “espírito”, que estava preste a se separar do corpo.
A Escritura mostra o homem como sendo um
ser tricotômico: “espírito, e alma, e corpo” (1Ts 5.23). Há uma diferença entre
a alma e o espírito, ainda que não seja fácil afirmar onde não são eles
similares entre si. O espírito parece ser o mais elevado panorama de nosso ser
complexo. É isso que particularmente distingue o homem das bestas, e que o liga
a Deus. O espírito é aquilo que Deus forma dentro de nós (Zc 12.1); portanto, é
ele chamado o “Deus dos espíritos de toda a carne” (Nm 16.22). Na morte, o
espírito volta a Deus, que o deu (Ec 12.7).
O ato pelo qual o Salvador pôs seu
espírito nas mãos do Pai foi um ato de fé —“[eu] entrego”. Foi um bendito ato
com a intenção de ser um precedente para todo seu povo. O último ponto
observável é a maneira na qual Cristo executou seu ato: ele expressou tais
palavras “com grande voz”. Ele falou para que todos pudessem ouvir, e para que
seus inimigos, que o julgavam destituído e desamparado por Deus pudessem saber
que ele não mais o estava, antes, que ainda era amado por seu Pai, e podia pôr
seu espírito confiantemente em suas mãos.
“Pai, nas tuas mãos entrego o meu
espírito”. Foi a última coisa que o Salvador disse antes de expirar. Enquanto
pendurado na cruz, por sete vezes seus lábios moveram-se para falar. Sete é o
número da inteireza ou perfeição. No Calvário, então, como em todo lugar, as
perfeições do Bem-Aventurado foram mostradas. Sete é também o número de
descanso em uma obra encerrada: em seis dias Deus fez céu e terra e, no sétimo,
descansou, contemplando com satisfação aquilo sobre o que pronunciara ser
“muito bom”. Assim também aqui com Cristo: uma obra fora-lhe dada para fazer, e
tal obra estava agora feita. Exatamente como o sexto dia levou à conclusão a
obra de criação e reconstrução, assim a sexta declaração do Salvador foi “Está
consumado”. E, exatamente como o sétimo dia foi o dia de repouso e satisfação,
assim a sétima elocução do Salvador trá-lo ao lugar de descanso — as mãos do
Pai.
Por sete vezes o Salvador agonizante
falou. Três dessas elocuções diziam respeito aos homens: a um deu a promessa de
que deveria estar com ele naquele dia no Paraíso; a um outro confiou sua mãe; à
massa de expectadores fez menção de estar com sede. Três dessas elocuções foram
dirigidas a Deus: ao Pai ele orou por seus assassinos; a Deus ele expressou seu
triste lamento; e agora, nas mãos do Pai, ele entrega seu espírito. Ao ouvido
de Deus e dos homens, dos anjos e do diabo, ele bradara em triunfo: “Está
consumado”.
“Pai, nas tuas mãos
entrego o meu espírito”.
É digno de nota que esse brado final do
Salvador tenha sido pronunciado pelo espírito de profecia muitos séculos antes
da Encarnação. No salmo de número trinta e um ouvimos o Filho de Davi e o
Senhor dizendo, antecipadamente:
“Em ti, Senhor, confio; nunca
me deixes confundido; livra-me pela tua justiça. Inclina para mim os teus
ouvidos, livra-me depressa; sê a minha firme rocha, uma casa fortíssima que me
salve. Porque tu és a minha rocha e a minha fortaleza; pelo que, por amor do
teu nome, guia-me e encaminha-me. Tira-me da rede que para mim esconderam, pois
tu és a minha força. Nas tuas mãos encomendo o meu espírito; tu me remiste,
Senhor Deus da verdade” (vv. 1-5)!
Em conexão com cada uma das elocuções de
nosso Salvador na cruz uma profecia foi cumprida. Na primeira vez, ele clamou,
“Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”, e isso cumpriu Isaías 53.12 —
“pelos transgressores intercedeu” [ARA]. Na segunda, ele prometeu ao ladrão:
“Hoje estarás comigo no Paraíso”, e isso foi um cumprimento da profecia do anjo
a José — “chamarás o seu nome Jesus; porque ele salvará o seu povo dos seus
pecados” (Mt 1.21). Na terceira, disse à sua mãe: “Mulher, eis aí o teu filho”,
e isso cumpriu a profecia de Simeão — “uma espada traspassará também a tua
própria alma” (Lc 2.35). Na quarta, ele havia perguntado: “Deus meu, Deus meu,
por que me desamparaste?” e tais palavras foram idênticas àquelas do Salmo
22.1. Na quinta, ele exclamou: “Tenho sede”, e isso foi um cumprimento do Salmo
69.21 — “na minha sede me deram a beber
vinagre”. Na sexta, ele bradou triunfantemente: “Está consumado”, e essas são
quase as mesmas palavras que servem de conclusão àquele maravilhoso salmo vinte
e dois: “ele o fez”, ou, como se poderia muito bem verter do hebraico: “ele
consumou”, com o contexto mostrando que ele tinha
feito, a saber, a obra de expiação. Por fim, ele orou: “Pai, nas tuas mãos
entrego o meu espírito”, e, como mostramos de antemão, ele tão-somente estava
citando o que dele fora escrito de antemão no Salmo 31. Ó, as maravilhas da
cruz! Nunca chegaremos ao fim delas.
“Pai, nas tuas mãos
entrego o meu espírito”
1. Vemos aqui o Salvador outra vez de
volta à comunhão com o Pai.
Isso é sobremaneira precioso. Por um
instante aquela comunhão foi quebrada — quebrada exteriormente — quando a luz
da santa face de Deus foi ocultada dAquele que levava nossos pecados, mas agora
as trevas haviam passado e eram findas para sempre. Até à cruz tinha havido
comunhão perfeita e ininterrupta entre o Pai e o Filho. É extraordinariamente
belo observar como o terrível “Cálice” mesmo fora aceito das mãos do Pai:
“Não beberei eu o cálice que o Pai me
deu?” (Jo 18.11). Na cruz, no início, o Senhor Jesus ainda é encontrado em
comunhão com o Pai, pois senão não teria clamado, “Pai, perdoa-lhes”! A sua
primeira declaração na cruz, então, foi “Pai, perdoa-lhes”, e agora sua última
palavra é: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”. Porém, entre aquelas
elocuções ele tinha ficado ali pendurado por seis horas: três delas passadas em
sofrimento nas mãos do homem e de Satanás; as três outras, na mão de Deus,
quando a espada da justiça divina foi “despertada” para ferir o Companheiro de
Jeová [1]. Durante aquelas três últimas horas, Deus
se tinha retirado do Salvador, o que evoca aquele terrível clamor: “Deus meu,
Deus meu, por que me desamparaste?” Mas agora está tudo feito. O cálice é
bebido até à última gota: a tempestade da ira se tinha passado: as trevas são
idas, e o Salvador é visto mais uma vez em comunhão com o Pai — comunhão nunca
mais quebrada.
“Pai”. Quão amiúde essa palavra estava nos
lábios do Salvador! A primeira vez em que foi registrada: “Não sabeis que me
convém tratar dos negócios de meu Pai?” No que foi provavelmente seu primeiro
discurso formal — o “sermão da montanha” — ele fala do “Pai” dezessete vezes.
Quando em seu discurso final aos discípulos, o “discurso pascal” encontrado em
João 14-16, a palavra “Pai” é achada não menos do que quarenta e cinco vezes!
No capítulo seguinte, João 17, que contém o que é conhecido como a grande oração
sacerdotal de Cristo, ele fala ao e do Pai por mais seis vezes. E agora, pela
última vez antes de renunciar à própria vida, diz novamente: “Pai, nas tuas
mãos entrego o meu
espírito”.
espírito”.
E quão abençoado é que seu Pai seja nosso
Pai! Nosso porque seu. Quão maravilhoso isso é! Quão inefavelmente precioso que
eu possa erguer meus olhos ao grande Deus vivente e falar, “Pai”, meu Pai! Que
conforto está contido nesse título! Que segurança é comunicada! Deus é meu Pai,
então ele me ama, ama-me como ao próprio Cristo (Jo 17.23)! Deus é meu Pai e me
ama, então ele se importa comigo. Deus é meu Pai e cuida de mim, então suprirá
todas as minhas necessidades (Fp 4.19). Deus é meu Pai, então ele fará com que
nenhum mal aconteça a mim, sim, que todas as coisas serão feitas para
trabalharem juntos para o meu bem [2]. Ó, que seus filhos adentrem mais
profunda e praticamente na bênção de tal relacionamento, e então, alegremente
exclamem com o apóstolo: “Vede quão grande caridade nos tem concedido o Pai:
que fôssemos chamados filhos de Deus” (1Jo 3.1)!
“Pai, nas tuas mãos
entrego o meu espírito”
2. Vemos aqui um calculado contraste.
Por mais de doze horas Cristo estivera nas
mãos dos homens. Disso falara aos seus discípulos quando os avisou de antemão
que “o Filho do homem será entregue nas mãos dos homens:e matá-lo-ão (Mt
17.22,23). Disso fizera menção no meio da terrível gravidade do Getsêmane:
“Então chegou junto dos seus discípulos, e disse-lhes: Dormi agora, e repousai;
eis que é chegada a hora, e o Filho do homem será entregue nas mãos dos
pecadores” (Mt 26.45). A isso os anjos fizeram referência na manhã da
ressurreição, dizendo às mulheres: “Não está aqui, mas ressuscitou. Lembrai-vos
como vos falou, estando ainda na Galiléia, dizendo: Convém que o Filho do homem
seja entregue nas mãos de homens pecadores, e seja crucificado, e ao terceiro
dia ressuscite” (Lc 24.6,7). Isso recebeu seu cumprimento quando o Senhor Jesus
se entregou àqueles que vieram prendê-lo no Jardim. Como vimos em um capítulo
anterior, Cristo podia facilmente ter evitado a prisão. Tudo que tinha que
fazer era deixar os oficiais dos sacerdotes prostrados no chão, e ir embora
tranqüilamente. Mas ele não agiu assim. A hora marcada havia chegado. O tempo
em que ele submeter-se-ia para ser levado como um cordeiro ao matadouro
chegara. E ele entregou-se nas “mãos dos pecadores”. Como eles o trataram é bem
sabido; eles se aproveitaram completamente da oportunidade. Eles deram plena
vazão ao ódio do coração carnal por Deus. Com “mãos ímpias” (At 2.23, KJV) o
crucificaram. Mas agora tudo está acabado. O homem fizera o seu pior. A cruz
fora suportada; a obra designada é terminada.
Voluntariamente tinha o Salvador se
entregado às mãos dos pecadores, e agora, voluntariamente, ele entrega seu
espírito nas mãos do Pai. Que bendito contraste! Nunca mais ele estará de novo
nas “mãos dos homens”. Nunca mais estará ele à mercê do ímpio. Nunca mais
sofrerá vergonha. Nas mãos do Pai ele se entrega, e o Pai agora tomará conta de
seus interesses. Não precisamos nos deter em detalhes na bendita conseqüência.
Três dias depois o Pai o ressuscitava dos mortos. Quarenta dias depois disso, o
Pai o exaltava acima de todo o principado, e poder, e de todo o nome que se
nomeia, e o pôs à sua própria direita nos céus [3]. E lá agora ele se assenta no trono do
Pai (Ap 3.21), esperando até que seus inimigos sejam feitos escabelo de seus
pés [4]. Por um dia, ainda que demorado, as
posições serão invertidas. O Pai enviará aquele a quem o mundo rejeitou: ele o
fará outra vez, mas em poder e glória: para governar e reinar sobre toda a
terra com vara de ferro [5]. Então a situação será inversa. Quando
aqui esteve anteriormente os homens se atreveram a acusá-lo publicamente, mas
então ele assentar-se-á para julgá-los. Outrora esteve nas mãos deles, então
eles estarão nas suas. Outrora gritaram: “Tira[-o] [6]”, então ele dirá: “Apartai-vos de mim [7]”. E, no meio tempo, ele está nas mãos do
Pai, sentado em seu trono, esperando seu deleite!
“Pai, nas tuas mãos
entrego o meu espírito.
E, havendo dito
isto, expirou.”
3. Vemos aqui a perfeita entrega de Cristo a Deus.
Quão abençoadamente ele provou isso em toda a sua caminhada!
Quando sua mãe o procurou em Jerusalém quando era um menino de doze anos, ele
disse: “Não sabeis que me convém tratar dos negócios de meu Pai?” Quando esteve
faminto no deserto após um jejum de quarenta dias e o diabo o instou a fazer
pão das pedras, ele respondeu dizendo que vivia de toda palavra de Deus [8]. Quando as poderosas obras que ele tinha
feito e a mensagem que tinha entregado não conseguiram comover seus ouvintes,
ele se submeteu àquele que o enviara, dizendo: “Graças te dou, ó Pai, Senhor do
céu e da terra, que ocultaste estas coisas aos sábios e entendidos, e as
revelaste aos pequeninos” (Mt 11.25). Quando as irmãs de Lázaro mandaram
informar ao Salvador da enfermidade de seu irmão, em vez de apressadamente ir a
Betânia, ele ficou ainda dois dias no lugar onde estava, dizendo: “Esta enfermidade
não é para morte, mas para glória de Deus”.[9]
Não era a afeição natural que o movia a agir, mas a glória de
Deus! Sua comida era fazer a vontade daquele que o enviou.[10] Em tudo ele se submetia ao Pai. Veja-o de
manhã, “levantando-se de manhã muito cedo” (Mc 1.35), a fim de poder estar na presença
do Pai. Veja-o antecipando-se a toda grande crise e se preparando para ela derramando
seu coração em súplicas. Veja-o passando mesmo a última hora antes de sua
prisão com sua face perante Deus. Quão adequadamente podia ele dizer: “Tomai sobre
vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração”.[11] E da mesma forma que viveu, morreu —
entregando-se nas mãos do Pai. Esse foi o último ato do Salvador agonizante. E
quão extraordinariamente belo. Quão totalmente de conformidade com toda a sua
vida! Ela manifestava sua perfeita confiança no Pai. Ela revelava a bendita intimidade
que havia entre eles. Ela mostrava sua absoluta dependência de Deus.
Verdadeiramente, em tudo ele nos deixou um exemplo. O
Salvador entregou seu espírito nas mãos de seu Pai na morte, porque ele tinha
estado nas mãos dele por toda a sua vida! Isso é verdade quanto a você, leitor
meu? Como pecador, você entregou seu espírito nas mãos divinas? Nesse caso,
está salvaguardado. Você pode dizer com o apóstolo: “Eu sei em quem tenho
crido, e estou certo de que é poderoso para guardar o meu depósito até aquele
dia” (2Tm 1.12)? E você, como cristão, rendeu-se plenamente a Deus? Você presta
atenção àquela palavra: “Rogo-vos pois, irmãos, pela compaixão de Deus, que
apresenteis os vossos corpos em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que
é o vosso culto racional” (Rm 12.1)? [12] Está vivendo para a glória dele que amou
e se deu por você? Está caminhando em dependência diária dele, sabendo que sem
ele não pode fazer nada (Jo 15.5), mas aprendendo que pode fazer todas as
coisas por Cristo, que fortalece você (Fp 4.13)? Se sua vida inteira está
entregue a Deus, e a morte o apanhar antes que o Salvador retorne para receber
seu povo para si mesmo, então será fácil e natural para você dizer: “Pai, nas
tuas mãos entrego o meu espírito”. Balaão disse: “A minha alma morra a morte
dos justos” (Nm 23.10). Ah, mas para morrer a morte dos justos, você tem de
viver a vida dos justos, e essa consiste em absoluta submissão e dependência de
Deus.
“Pai, nas tuas mãos
entrego o meu espírito”
4. Vemos aqui a absoluta singularidade do
Salvador.
O Senhor Jesus morreu como nenhum outro
jamais morreu. Essa foi a sua afirmação: “Por isto o Pai me ama, porque dou a
minha vida para tornar a tomá-la. Ninguém ma tira de mim, mas eu de mim mesmo a
dou; tenho poder para a dar, e poder para tornar a tomá-la” (Jo 10.17,18). As
várias provas de que a vida de Cristo não foi tirada dele foram expostas diante
do leitor na Introdução deste livro. A mais convincente demonstração de todas
foi vista na entrega de seu espírito nas mãos do Pai. O Senhor Jesus mesmo
disse: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”, mas o Espírito Santo, ao
descrever a verdadeira renúncia da sua vida, emprega três diferentes expressões
que dão a conhecer mui convincentemente o fato que nós estamos ora considerando,
e as várias palavras empregadas pelo Espírito são mais apropriadas aos
respectivos evangelhos em que são encontradas.
Lemos em Mateus 27.50: “E Jesus, clamando
outra vez com grande voz, rendeu o espírito”. Mas tal tradução não consegue
salientar a força própria do original: o sentido no grego é o de que ele
“despachou seu espírito”. Essa expressão é a mais apropriada em Mateus, que é o
evangelho do rei, apresentando nosso Senhor como “O Filho de Davi; o Rei dos
judeus”. Um tal termo é lindamente adequado ao evangelho real, pois o ato do
Senhor tem conotação de autoridade, como de um rei mandando embora um servo. A
palavra usada em Marcos — que apresenta nosso Senhor como o servo perfeito — é
a mesma de nosso texto — tomada de Lucas, o evangelho da perfeita humanidade de
Cristo — e significa, ele “soprou para fora seu espírito”. Foi sua passiva
tolerância da morte. Em João, que é o evangelho da glória divina de Cristo, uma
outra palavra é empregada pelo Espírito Santo: “Inclinando a cabeça, entregou o
espírito” (Jo 19.30), ou liberou, talvez fosse mais exato. Aqui, o Salvador não
“encomenda” seu espírito ao Pai como no evangelho de sua humanidade, mas, de
acordo com sua glória divina, como alguém que tem completo poder sobre ele,
“libera” seu espírito!
Duas coisas eram necessárias para se fazer
propiciação: primeiro, uma satisfação completa deve ser oferecida à santidade
de Deus ultrajada e à sua justiça ofendida, e isso, no caso de nosso
substituto, somente podia ser por ele sofrendo a ira divina derramada. E isso
tinha sido suportado. Agora ali restava apenas a segunda coisa, e essa era para
o Salvador provar o gosto da morte. “Aos homens está ordenado morrerem uma vez
vindo depois disso o juízo” (Hb 9.27). Com o pecador é, primeiro, a morte,
depois o julgamento; com o Salvador a ordem, naturalmente, foi invertida. Ele
suportou o juízo de Deus contra os nossos pecados e depois morreu.
O fim agora era chegado. Perfeito senhor
de si mesmo, não subjugado pela morte, ele brada com uma grande voz de vigor
não exaurido, e entrega seu espírito nas mãos do Pai, e nisso sua singularidade
foi manifestada. Ninguém mais jamais agiu ou morreu assim. Seu nascimento foi
singular. Sua vida foi singular. Sua morte foi singular. Ao “dar” a sua vida,
sua morte foi diferenciada de todas as outras mortes. Ele morreu por um ato de
sua própria volição! Quem, a não ser uma pessoa divina, poderia ter feito isso?
A um mero homem teria sido suicídio; mas, para ele, era uma prova de sua
perfeição e singularidade. Ele morreu como o Príncipe da Vida! [13]
“Pai, nas tuas mãos
entrego o meu espírito”
5. Vemos aqui o lugar de segurança eterna.
Repetidas vezes o Salvador falou de um
povo que lhe fora “dado” (Jo 6.37 etc.), e na hora de sua prisão ele disse:
“Dos que me deste nenhum deles perdi” (Jo 18.9). Então, não é deleitoso ver que
na hora da morte o bendito Salvador entrega-os agora à salvaguarda do Pai? Na
cruz, Cristo pendurado como o representante de seu povo e, por conseguinte,
vemos seu último ato como um ato representativo. Quando o Senhor Jesus entregou
seu espírito nas mãos de seu Pai, ele também apresentou nossos espíritos junto
com o seu, para a aceitação do Pai. Jesus Cristo nunca viveu nem morreu por si
próprio, mas pelos crentes: o que ele fez em seu último ato reportava-se a eles
tanto quanto a si mesmo. Devemos, pois, olhar Cristo aqui unindo juntamente
todas as almas dos eleitos, e fazendo uma oferta solene delas, com seu próprio
espírito, a Deus.
A mão do Pai é o lugar da segurança
eterna. Naquela mão o Salvador encomendou seu povo, e ali eles estão para
sempre seguros. Disse Cristo, referindo-se aos eleitos: “Meu Pai, que mas deu,
é maior do que todos; e ninguém pode arrebatá-las da mão de meu Pai” (Jo
10.29). Aqui então está o fundamento da confiança do crente. Aqui está a base
de nossa segurança. Assim como nada podia prejudicar Noé quando a mão de Jeová
havia trancado a porta da arca, também nada pode tocar o espírito do santo pego
pela mão de onipotência. Ninguém pode arrancá-los de lá. Fracos somos em nós
mesmos, porém “guardados pelo poder de Deus”, é a declaração segura da
escritura sagrada: “guardados pelo poder de Deus, mediante a fé, para salvação
preparada para revelar-se no último tempo” (1Pd 1.5, ARA). Os adeptos formais
que parecem correr bem por um tempo podem ficar fatigados e abandonar a
corrida. Aqueles que são movidos pela excitação carnal de um “encontro de
reavivamento” agüentam somente por um tempo, pois “não têm raiz em si mesmos”.[14] Aqueles que confiam no poder de suas
próprias vontades e resoluções, que abandonam maus hábitos e prometem agir
melhor, amiúde fracassam, e seu último estado é pior que o primeiro.[15] Muitos que são persuadidos pelos bem
intencionados, mas ignorantes, aconselhadores para “juntar-se à igreja” e
“viverem a vida cristã” com freqüência apostatam da verdade. Mas todo espírito
que nasceu de novo está eternamente a salvo na mão do Pai.
“Pai, nas tuas mãos
entrego o meu espírito”
6. Vemos aqui a bênção da comunhão com
Deus.
O que estamos aludindo particularmente
aqui é ao fato de que a comunhão com Deus pode ser desfrutada independentemente
do lugar ou das circunstâncias. O Salvador estava na cruz, rodeado por uma
multidão escarnecedora, seu corpo sofrendo intensa agonia, entretanto, ele
estava em comunhão com o Pai! Essa é uma das mais doces verdades destacadas
pelo nosso texto. É privilégio nosso gozar da comunhão com Deus em todo tempo,
independente de circunstâncias ou condições externas. Tal comunhão é por fé, e
a fé não é afetada pelas coisas da vista.[16] Não importa quão desagradável seu
quinhão possa ser, leitor meu, é seu inefável privilégio desfrutar de comunhão com Deus. Tal como os três hebreus a desfrutaram com o Senhor no meio do forno de fogo ardente, como Daniel na cova dos leões, como Paulo e Silas no cárcere de Filipos, como o Salvador na cruz, assim também você, seja em que lugar for! A cabeça de Cristo estava circundada com uma coroa de espinhos em cima, mas embaixo estavam as mãos do Pai!
quinhão possa ser, leitor meu, é seu inefável privilégio desfrutar de comunhão com Deus. Tal como os três hebreus a desfrutaram com o Senhor no meio do forno de fogo ardente, como Daniel na cova dos leões, como Paulo e Silas no cárcere de Filipos, como o Salvador na cruz, assim também você, seja em que lugar for! A cabeça de Cristo estava circundada com uma coroa de espinhos em cima, mas embaixo estavam as mãos do Pai!
Não ensina nosso texto mui explicitamente
a bendita verdade e o bendito fato da comunhão com o Pai na hora da morte?
Então por que se apavorar, companheiro cristão? Se Davi, sob a dispensação do
Antigo Testamento, podia dizer: “Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da
morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo” (Sl 23.4), por que devem
os crentes agora temer, depois de Cristo haver arrancado o aguilhão da morte! [17] A morte pode ser a “Rainha dos terrores”
para o não salvo, mas para o cristão, ela é simplesmente a porta que dá acesso
à presença do Bem-Amado. As moções de nossas almas na morte, tanto quanto na
vida, voltam-se instintivamente para Deus. “Pai, nas tuas mãos entrego o meu
espírito” será nosso brado, caso estejamos conscientes. Enquanto tabernaculamos
aqui não temos descanso algum senão no seio do Pai;[18] e quando saímos daqui, nossa expectativa
e nossos desejos ardentes são o de estar com ele. Lançamos muitos olhares
desejosos em direção ao céu, mas quando a alma do salvo se aproxima da
bifurcação dos caminhos, então ela se atira nos braços de amor, da mesma forma
que um rio após muitos volteios e curvas se derrama no oceano. Nada além de
Deus pode satisfazer aos nossos espíritos neste mundo, e nada senão ele pode
nos satisfazer quando formos embora daqui.
Contudo, leitor, apenas os crentes estão
garantidos e são encorajados a assim encomendar seus espíritos nas mãos de Deus
à hora da morte; quão triste é o estado de todos os incrédulos que estão à
morte. Seus espíritos, ainda, cairão nas mãos dele, mas será isso a miséria
deles, não o privilégio. Os tais acharão que é uma “horrenda coisa cair nas
mãos do Deus vivo” (Hb 10.31). Sim, porque, em vez de caírem nos braços de
amor, cairão nas mãos de justiça.
“Pai, nas tuas mãos
entrego o meu espírito”
7. Vemos aqui o verdadeiro refúgio do
coração.
Se a elocução final do Salvador expressa a
oração dos cristãos às portas da morte, ela mostra que grande valor eles
colocam em seus espíritos. O espírito interior é o tesouro precioso, e nossa
principal solicitude e nosso maior cuidado é vê-lo guardado em mãos seguras.
“Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”. Tais palavras então podem ser tomadas
para expressar a atenção dada pelo crente à sua alma, para que ela possa estar segura,
o que sempre acontece com o corpo. O santo de Deus que se aproxima da morte exercita
poucos pensamentos acerca de seu corpo, onde ele será posto, ou como o
disporão dele; ele confia-o às mãos de seus amigos. Porém, como seu cuidado desde o começo é com sua alma, assim ele pensa então nela, e com seu último suspiro a entrega à custódia divina. Não é: “Senhor Jesus, receba meu corpo, cuide do meu pó”; mas: “Senhor Jesus, receba meu espírito” — Senhor, proteja a jóia quando o cofre estiver quebrado.
disporão dele; ele confia-o às mãos de seus amigos. Porém, como seu cuidado desde o começo é com sua alma, assim ele pensa então nela, e com seu último suspiro a entrega à custódia divina. Não é: “Senhor Jesus, receba meu corpo, cuide do meu pó”; mas: “Senhor Jesus, receba meu espírito” — Senhor, proteja a jóia quando o cofre estiver quebrado.
E agora uma breve palavra de apelo para
concluir. Meu amigo, você está em um mundo que é cheio de problemas. Você não é
capaz de cuidar de si mesmo em vida, muito menos o será na morte. A vida tem
muitas provações e tentações. Sua alma é ameaçada dos dois lados. Em toda
direção há perigos e armadilhas. O mundo, a carne e o diabo entraram em
combinação contra você. Aqui está então o farol de luz em meio às trevas. Aqui
está o porto de abrigo em todas as tempestades. Aqui está o bendito pálio que
protege de todos os dardos inflamados do maligno.[19] Graças a Deus que há um refúgio para os
vendavais da vida e para os terrores da morte — a mão do Pai — o verdadeiro céu
do coração.
EXTRAÍDO DO LIVRO;
OS SETE BRADOS DO SALVADOR SOBRE A CRUZ
ARTHUR W PINK
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