A Sociedade sob a influência do Paganismo
"Eles são cruéis e não usarão de
misericórdia",
Jeremias 6.23.
Em todas as pinturas há pontos
que atraem a nossa atenção pela maneira como se salientam. Assim é quanto à
pintura que a história e a literatura nos deixaram do paganismo. Ao começarmos
a análise, ficamos surpreendidos com os atos isolados de crueldade ou injustiça
para com certas classes e, particularmente, para com os desamparados.
Continuando a estudar e a refletir, ficamos impressionados com a depravação
geral, mísera degradação e degeneração da sociedade, desde o imperador ao
escravo. Raciocinando sobre a matéria, chegamos à conclusão evidente de que,
se todas as classes e ambos os sexos não se tivessem igualmente degenerado, um
protesto indignado de alguma classe se teria levantado por cima dos clamores
de miséria e denunciado aquelas orgias e devassidões.
Mão são precisos fatos para
justificar o que acima ficou dito. Portanto, forneceremos alguns casos que
podem dar testemunho esmagador; primeiro referentes aos governantes, depois
aos homens livres, e, finalmente, aos escravos.
A história da vida dos
imperadores romanos, de suas famílias e parentes, com poucas, e, portanto,
notáveis exceções, expõe todos os vícios, que a natureza decaída é capaz de
praticar. O livro que publicasse a biografia desses pervertidos, suas páginas
seriam enegrecidas. Como esses imperadores eram elevados ao trono por eleição
popular, a moral deles refletia a própria moral do povo.
Vejamos
alguns atos dos maiores Césares.
Júlio César, o feliz soldado e
talentoso general, matou na guerra, principalmente para seu benefício pessoal e
satisfação da sua ambição desordenada, mais de um milhão e cem mil homens (1),
e corrompeu, segundo declaração de um célebre historiador, metade das senhoras
de posição e influência de Roma. "César", diz ele, "que matava
os agentes de seus crimes se eles falhassem em destreza; César, o amanate de
cada mulher... é tido como grande homem por uma multidão de escritores. Os
talentos deste homem singular e a boa fortuna que constantemente o bafejou
até o momento do seu assassinato, encobriram a hediondez de suas ações (2).
César Augusto, um dos melhores
imperadores, era réu de adultério covarde e de vergonhosa libertinagem; a sua
única filha, Júlia, tornou-se infame pela sua conduta e foi banida por seu pai,
que lhe havia dado o exemplo.
Tibério, que sucedeu a
Augusto, foi o símbolo de crueldade, intemperança e devassidão. Não somente os
seus parentes e amigos, mas também os grandes e opulentos membros da aristocracia,
foram sacrificados à sua ambição, atrocidade e avareza. Quase que não havia em
Roma uma só família que não o amaldiçoasse pela perda de um irmão, pai ou
marido. Finalmente retirou-se para a ilha de Cáprea, na costa da Campânia, onde
mergulhou em prazeres repugnantes. No seu retiro solitário propôs recompensas
aos que inventassem novos prazeres ou pudessem produzir a volúpia. Arruinou-se
pela prática de vícios contrários à natureza e que fariam corar o mais
depravado mortal. A sua intemperança era tal, que Sêneca, espirituosa-mente,
observa que "ele nunca se embebedou senão uma só vez na vida, porque
continuou num estado perpétuo de embriaguez desde o dia em que se entregou ao
vício de beber até o último momento da sua existência".
Apesar de tudo isso, Tibério,
como seus predecessores Júlio e Augusto, e muitos dos seus sucessores, foram,
depois de mortos, elevados à dignidade de deuses e adorados como divindades em
Roma. Se tais eram os vossos deuses, ó cidadãos romanos, em que condições
estaríeis?!
Calígula, o imperador que se
seguiu, cometeu atos de impiedade, crueldade e extravagância atrocíssimos. Começou
a carreira da perversidade matando alguns parentes, alguns senadores e pessoas
de posição. Descaradamente, casou-se com a sua própria irmã Drusila; e, na
morte dela, ordenou que se lhe prestassem honras divinas em templos construídos
especialmente para ela. Para um cavalo favorito que ele tinha, erigiu um
palácio com uma cocheira de mármore e com as grades da mangedoura de marfim.
Alimentava esse animal com cevada dourada numa vasilha de ouro. Introduzia no
templo esse cavalo, paramentado de sacerdote de Júpiter, e ordenou que oferecessem
sacrifícios a si, à sua mulher e ao seu cavalo. Casou-se com várias mulheres,
que ia abandonando uma após outra. A crueldade veio a ser nele um hábito. Certa
ocasião deu ordens para um assassinato, com as seguintes palavras: "Feri-o
de tal maneira que ele possa sentir a presença da morte". Noutra ocasião
exclamou: "Oxalá que o povo romano tivesse somente uma cabeça, que eu
pudesse cortar de uma só vez". Parece, como observa Sêneca, que ele foi
trazido pela natureza com o fim especial de mostrar quanto mal poderia ser
executado pela depravação suportada pelos mais altos poderes (3).
Cláudio, evidentemente pela
natureza de uma disposição fraca e inofensiva, começou o seu reinado de
maneira a reparar, em parte, o caráter da sua classe; porém sua mulher,
Messalina, fornece-nos uma ilustração da condição social e moral da
aristocracia daquele tempo. Ela completou o que faltava ao imperador. O nome Messalina ficou infamado e representa
tudo que há de mais baixo no seu sexo. Não era menos notória pela crueldade,
que pela influência sobre o imperador, e pelos atos que praticava em nome
dele. Conseguiu a morte de Áppio Silano, que se havia casado com a sogra do
imperador, a de Silano e a de Pompeu, seus genros; e de suas duas sobrinhas, as
Lívias. Suetônio também informa-nos que Cláudio mandou executar trinta e cinco
senadores e mais de trezentos cavaleiros.
O acontecimento mais
extraordinário do seu tempo foi o casamento público de Messalina, a imperatriz,
com um jovem nobre chamado Sílio, à beira-mar, durante a ausência temporária
do imperador. Aquela mulher depravada, descontente com a ostentação descarada
da sua afeição pelo amante, resolvera, por este modo, mostrar o seu desdém por
todas as exigências sociais. Casaram-se à vista da cidade inteira, com todas as
cerimônias imperiais de costume. Qual não seria a condição moral do povo que
podia, com aplauso e sem protesto, presenciar tal conduta nos primeiros lugares
da sociedade? Messalina foi executada, casando-se o imperador com sua sobrinha,
que se esforçou por imitar a conduta da tia, e assim envenenou o marido
imperial (4).
Nero sucedeu a Cláudio. Basta
o nome Nero
para completar
o catálogo. Parece ter alcançado uma evidência nunca excedida em tudo que é
abominável à natureza humana. À noite, freqüentava, disfarçado, todos os
lugares de libertinagem que havia em Roma; representava publicamente nos
teatros; em estado de nudez batia-se nos jogos públicos, e, perante a multidão
dos espectadores, praticava as maiores obscenidades concelúveis, mas não
descritíveis. Mandou incendiar diversos bairros de Roma, e, durante alguns dias, regozijou-se com o terrível
espetáculo a que a sua barbaridade atroz tinha dado lugar, tocando em uma lira
e cantando, no alto do seu palácio, a destruição de Tróia. Para cúmulo da sua
selvageria, tendo falhado um plano desse monstro para afogar a própria mãe,
mandou assassiná-la (5).
Tais foram os principais
imperadores de Roma. A continuação deste inquérito seria muito fastidiosa, e o
resultado seria o mesmo. Ainda que um Tito, um Nerva e um Trajano se
levantassem, em intervalos, para variar a história, aparece também um
Domiciano, insistindo em ser intitulado deus, porém dado ao incesto e a matar moscas; um Cômodo, que
desonrou suas irmãs e cortou os narizes aos seus cortesãos, sob pretexto de
fazer-lhes a barba; um Caracala, que assassinou a mulher e o próprio irmão nos
braços da mãe, e um Heliogábalo, que escolheu um senado de mulheres ordinárias,
e elevou o seu cavalo à dignidade de cônsul. Esses confirmam as nossas
declarações sobre a condição moral e social dos que tinham as rédeas do governo
de Roma.
O que está dito dá idéia da
condição geral daquela sociedade. Os romanos, como povo, deveriam estar
extraordinariamente corrompidos para serem incapazes de se protegerem da
tirania e de vícios tão detestáveis, exercidos pelos seus imperadores. Só a
extrema degeneração do povo poderia privá-lo de todos os princípios de moral e
de sentimentos sãos, para suportarem tais excessos do poder absoluto. Onde
houver uma opinião pública generosa e viril, aí geralmente haverá respeito às
leis sociais, pelas exigências da decência, mesmo em estados não tão livres
como o era a Roma antiga.
O estado moral de um povo pode
ser convenientemente avaliado pelo modo como passa as suas horas de recreio, e
pelo caráter das diversões que são do gosto popular. A este respeito a história
nos oferece evidências abundantes sobre a moralidade aviltante do povo romano.
Os seus divertimentos consistiam principalmente em jogos públicos, realizados
nos espaçosos coliseus, sempre acompanhados de indecências vergonhosas ou de horríveis crueldades com
perdas de vidas. Quanto às representações, é suficiente declarar que havia
tumultos, quando, pelo respeito ao bem comum, tentavam reformar os abusos.
Algumas palavras acerca dos seus jogos cruéis e particularmente sobre os
combates de gladiadores, não deixarão de ser instrutivas.
Em tempos remotos encontra-se
o costume de matar animais domésticos, cativos e escravos sobre os túmulos de
reis e chefes falecidos, costume que parece ter existido em nações bem
separadas umas das outras. Esse hábito prevalecia há pouco entre tribos
africanas e índios americanos. Poder-se-iam citar numerosos exemplos: Aquiles
honrou a pira de seu amigo Patroclus; na pira do rei da Assíria, mencionado por
Diodorus, todas as mulheres do rei foram queimadas; o sacrifício das viúvas
indianas, e, no funeral da mãe do rei de Ashantee em 1817, quando três mil seres humanos foram imolados.
O costume, porém, era tão do gosto duma plebe cruel, que veio a ser um
divertimento. Jogos sanguinários e exibições gladiatórias eram vulgares em Roma
já no tempo da república, assumindo, porém, sob os imperadores, uma grandeza
que causa espanto e parece impossível.
Os jogos consistiam em lutar
entre animais ferozes, ou entre homens e animais, e também entre homens. Vários
edifícios eram destinados a essas exibições cruéis. O anfiteatro Flaviano,
agora conhecido como Coliseu, um dos maiores edifícios do mundo antigo, com
lotação de cem mil pessoas assentadas, era dedicado especialmente a esse divertimento
infernal.
Falemos primeiro dos combates
de animais. É de pasmar o número de animais excitados uns contra os outros e
mortos. Já no ano 250 a.C, se menciona a morte de cento e quarenta e dois
elefantes num circo (6). No ano 168 a.C, sessenta e três panteras e
quarenta ursos e elefantes serviram de divertimento aos romanos (7).
Desde esse tempo, combates entre elefantes e leões, leões e touros, ursos e elefantes,
ocorriam tão freqüentemente, que seria fastidioso repeti-los. Contudo, o mal crescia em magnitude à maneira que o império
progredia,como se pode deduzir do número quase incrível de animais que se diz
terem sido mortos. Cem leões foram exibidos por Sulla e destruídos por
lanceiros (8). Em jogos autorizados por Pompeu, no ano 55 a.C,
muitos animais foram mortos, entre os quais há mencão de seiscentos leões e
vinte elefantes. Júlio César, no seu terceiro consulado, no ano 45, deu um
espetáculo semelhante, que durou cinco dias, no qual girafas foram pela
primeira vez introduzidas, e homens da Tessália combateram com touros
bravíssimos. O hipopótamo, rinoceronte, o crocodilo e a cobra cascavel foram
introduzidos por imperadores subseqüentes para variar o divertimento. Na inauguração
do grande coliseu de Ti to sacrificaram-se cinco mil animais mansos (9);
enquanto Trajano, célebre entre os imperadores romanos pela sua clemência, por
ocasião duma vitória sobre os dacianos, matou onze mil animais nas festas que
fez para celebrar o fato (10).
Mas não pára aqui. Grande como
era o número de animais sacrificados nesses jogos, não era nada, comparado com
a multidão de seres humanos que, a sangue frio, eram assassinados para
satisfazer os desejos sanguinários e cruéis da população ou, no dizer dum
poeta:
"Sacrificavam pobres seres humanos
Para dar um feriado aos romanos".
Deixando de referir aqueles
que caíam nos combates com as feras, passamos a mencionar os combatentes cativos
tomados nas guerras e os escravos, ou criminosos condenados, entre os
primeiros apareciam, às vezes, cidadãos livres, que se alugavam para esse fim.
Farrar fornece-nos um esboço verdadeiro destes combates de gladiadores
("):
"E agora entra na arena a
garrida plêiade dos gladiadores, com os seus trajos e ornamentos ricos e
variados, parando em frente ao camarote imperial, com os braços levantados.
Estes bravos exclamam com voz firme: "Salve César! Nós, que estamos para morrer, te
saudamos!" Durante todo o dia corre o terrível derramamento de sangue
humano; o próprio ar parece repleto de orvalho carmesim e do fumo pesado da
carnificina. Agora um gladiador atira o seu laço com hábil certeza e o mirmilo desvia-se com um salto de
agilidade esplêndida; logo os golpes do atirador, do parmularius, chovem no grande escudo de
qualquer sabino; depois os caminheiros. os andatae,excitam gargalhadas, lutando
às cegas, com as cabeças metidas nos capacetes sem viseiras; então segue-se
talvez um combate entre negros, ou entre homens e mulheres, ou entre novos e velhos,
ou entre mulheres e pigmeus, ou entre combatentes aleijados e estropiados. O ar
é cortado duma vozearia estrondosa quando se ouve o grito de Habet! (Apanhou!), que significa
haver sido inflingido qualquer golpe mortal. Algum desgraçado, deixando cair o
seu escudo, bem pode levantar o braço para implorar a piedade do povo; a
populaça brutal, ébria de sangue, e enlouquecida com o encanto horrível daquele
espetáculo, em que seres humanos, como eles próprios, são esfaqueados e feitos
pedaços perante seus olhos, não se comove. Pode o valente gladiador, agora caído,
ter combatido valorosamente, o melhor que soube; basta que tenha sido
derrotado para não ser perdoado. A turba, de mãos no ar, com o polegar
estendido, dizia que aquela gritaria infernal e confusa era a sentença,
proferida por todos, incluindo mulheres e crianças: o pobre gladiador vencido
tinha de morrer! E morria" (2).
Muitas vezes os gladiadores
eram formados em bandos (gregatim) e lançados uns contra os outros. O povo presenciava, assim, batalhas renhidas, com a excitação de sentidos
provinda das terríveis cenas de sangue. E, quando já cansados disso, dava
largas à sua brutalidade, gritando: "Porque é que ele não morre
espontaneamente? Por que é que foge da espada? Matai-o! Queimai-o!
Desfazei-o!" Para que outro fim serviam os desgraçados? Eles, ou eram
escravos, e criminosos condenados à morte, ou gladiadores legais. Estes haviam
jurado ao seu lanista deixar-se queimar, amarrar, esfaquear, desfazer, conforme fosse
preciso. Além disso, anunciara-se nos cartazes, para maior atração do povo, que
os combates seriam sem quartel (sine missione). Os moços, os criados tocavam com um
ferro em brasa nos caídos para ver se estavam ou não mortos.
Seguia-se uma pausa. Por um
momento os espectadores, cujo partidarismo cruel se acha altamente excitado,
descansam. Enquanto entre eles sente-se o cheiro de vinho e açafrão, criados
vestidos de roupas cinzentas espetam ganchos de ferro nos corpos dos
gladiadores mortos e os arrastam ao spoliarium, que já se acha quase cheio de cadáveres; outros
endireitam a terra, e escravos etíopes espalham serrim branco ou areia branca
sobre as horríveis manchas de sangue coalhado para evitar que o terreno fique
escorregadiço.
Feito isso, os portões das
jaulas de animais ferozes abrem-se de repente: e para fora salta uma multidão
de leões, ursos, tigres, panteras e javalis, provocados a um excitamento louco
pelo medo, pela fome e pela tortura; atiçados de maneira a se despedaçarem uns
aos outros perante o público. Mas o espetáculo ainda não acabou. Depois disto
um desgraçado qualquer, vestido como Múcio Scaevola, queima a sua mão na chama
sem um grito de dor; outro, imitando Hércules, trepa à sua pira funéria e se
reduz a cinzas; outro, à maneira de Laureolo, é dependurado numa cruz e
devorado pelas feras: ainda outro miserável é queimado na túnica molesta, uma camisa embebida em
alcatrão; finalmente, um infeliz é amarrado a um pau e estropiado por um urso
faminto: alguns são cobertos com peles de animais bravios e caçados por cães de
fila.
Para cúmulo, no meio de gritos
ferozes: "Cristãos
às feras!" um velho ou uma gentil donzela permanece imóvel ante o rugido de leões
da Líbia, que devoram a vítima para gáudio da multidão selvagem.
"Enfim o sol se põe sobre
o lúgubre dia feriado romano, no qual miríades de cidadãos ficaram bem
inebriados de deleites com a angústia e a carnificina, e vão para os seus
banquetes ainda intoxicados com os vapores da matança, com o veneno da
crueldade sensual a ferver-lhes no sangue, sem um único suspiro de compaixão
pela perda de todas aquelas vidas humanas, admiráveis de força, de coragem,
de destreza heróica, e de paixão. Seriam inimigos? Não! Só o maldito costume
lhes podia haver tisnado os corações, que, presos duma paixão contagiosa, os
fazia insensíveis e surdos à barbárie representada por essa horrível hecatombe
cruel e criminosa. Não, não eram inimigos; eram objetos de divertimento".
Lipsio, grande autoridade
nesse assunto, calcula que os combates do Coliseu custavam de vinte a trinta
mil almas por mês, e acrescenta, que nunca guerra alguma custou tantas vidas
como esses jogos. Quando refletimos que a multidão de espectadores ansiosos
incluía todas as classes, desde o imperador ao escravo
mais baixo - o nobre, o senador, o sacerdote, a esposa, a virgem - que toda a
pompa e pureza, toda a rudeza e brutalidade do império, fazia parte da multidão
que se premia para saciar os olhos de sangue, e exultar nos gritos e gemidos
dos feridos e moribundos, não podemos ter dificuldade em calcular a condição
moral do povo sob a influência do paganismo no adiantado e civilizado século, ou período de Augusto
(n).
Os limites desta obra impossibilitam-nos
de aludir a todos os males do sistema pagão, que são vistos nos seguintes
exemplos da depravação moral: O praguejar é recomendado, se não pelos
preceitos, ao menos pelo exemplo dos melhores moralistas pagãos - especialmente
Sócrates, Platão e Sêneca, em cujas obras ocorrem numerosas pragas. Muitos
deles não somente advogam o suicídio, como Cícero, Sêneca e outros (14),
mas levavam consigo os meios, de se destruírem, como o fizeram Demóstenes,
Catão, Bruto, Cássio e outros. A verdade entre muitos, e mesmo entre os
melhores autores pagãos, era de pouco valor, porque ensinavam que, em muitas
ocasiões, "uma mentira era preferível à verdade"! Para fundamentar
esta terrível afirmação, Home cita muitas passagens de escritores pagãos (15).
Mais uma afirmação acerca da
condição moral e social da humanidade sob o sistema pagão, e terminaremos este
assunto. A escravidão, sistema de comprar, vender e reter em seu poder seres
humanos, vigorava em todo o mundo pagão. Alguns podem objetar que a escravidão era
permitida pelo Todo-poderoso sob a dispensação da Lei. Ê verdade que a
economia mosaica permitia uma espécie de servidão, porém a instituição diferia
essencialmente da que prevalecia nas nações pagas.
A servidão entre os judeus
podia provir, legalmente, do cativeiro na guerra, ou da insolvência, ou
incapacidade de fazer a restituição em casos de roubo. No primeiro caso, é
muito provável que o cativeiro moderado fosse um ato de misericórdia no tempo de Moisés. As mutilações
horríveis e outras crueldades praticadas nos cativos eram tão comuns entre as
nações pagas, que o cativeiro entre os judeus era uma situação preferível. Nos
outros casos, a escravidão era permitida como castigo; da mesma maneira que a
in-solvência fraudulenta e o roubo são punidos entre nós, tolhendo-se a
liberdade aos criminosos e recolhendo-os à prisão.
O ato de escravizar um
indivíduo (exceto nos casos acima), ou vendê-lo ou tê-lo como escravo, é punido
pela lei de Moisés (16).
Ao contrário dos escravos
entre os pagãos, a Lei judaica prescrevia que os escravos tinham de ser
tratados com humanidade (17). Este preceito é reforçado pelo
argumento:
"Porque os filhos de Israel são meus servos, que
eu tirei da terra do Egito".
Os escravos não deviam ser
punidos severamente; e quando morria um servo, o senhor podia sofrer castigo (18).
Se um senhor tirasse um olho, ou dente ou um membro de seu escravo; este devia
receber liberdade (19). Tinham direito a descanso e a privilégios
religiosos em cada dia de sábado ou de festa, de maneira que um sétimo do seu
tempo, pelo menos, ficasse livre de trabalho (20). Deviam ser convidados
para certas festas (21). Deviam receber alimentação adequada (22).
O senhor era obrigado a velar pelo casamento de uma serva, ou a tomá-la ou
dá-la a seu filho (23). O servo de origem hebréia não podia ser
escravo mais de seis anos; findos estes, ele devia ser despedido com sua mulher
e com presentes de valor considerável (24). Ainda antes de expirados
os seis anos, os escravos podiam resgatar-se ou ser resgatados por outrem, por
compra, por quantia adequada aos anos de serviços restantes (25).
No ano do Jubileu, ao som das trombetas de prata, todos os servos hebreus
ou escravos de nascimento tinham permissão de possuir propriedades (26).
Um escravo fugido de outra
nação, que procurasse refúgio entre os hebreus, devia ser recebido e tratado
com caridade e não ser mandado de volta (27). Vemos, portanto, que
os escravos de descendência hebréia eram, entre os judeus, um pouco menos que
os aprendizes entre nós. O estrangeiro aprisionado na guerra recebia melhor
tratamento que podia esperar se caísse nas mãos dos pagãos idolatras.
Não se deve passar por alto
que a dispensação mosaica era temporária e imperfeita(28). Como
Jesus explicou que o divórcio era permitido por Moisés, devido a dureza do coração,
assim também uma servidão moderada era permitida, devido à cobiça, mas
permitida com misericórdia para os cativos.
Quanto à escravidão praticada
por cristãos professos, diremos algumas palavras no próximo capítulo.
Agora passamos a descrever
muito resumidamente a condição dos escravos de senhores pagãos, particularmente
na Grécia e em Roma.
O costume era mundialmente
permitido e aprovado; não há um só filósofo que o tenha reprovado. Muitos dos
mais célebres filósofos tinham escravos. Até Platão, no seu livro Estado Perfeito, deseja somente que os gregos
não sejam escravizados. Na Ática, um distrito pouco maior que uma província
portuguesa, houve em certa ocasião 150.000 escravos. A história informa-nos de
que, em Roma, um tal Scauro tinha 8.000 escravos, e um senador romano, no reinado
de Augusto, quando morreu, deixou 4.116 escravos. No reinado de Júlio César, os
escravos eram, em número, superior aos livres, e essa proporção mais tarde
assumiu aspecto tão alarmante, tanto na Grécia como em Roma, que os escravos
foram proibidos de usar roupa distintiva, a fim de não conhecerem a sua
superioridade numérica. Pelas leis de Roma, os
escravos eram considerados "bens móveis": eram comprados, vendidos,
trocados, sem restrição alguma, e podiam ser punidos à vontade de seu senhor, e
assassinados por ele ou por sua ordem. Não possuíam mais direitos legais que
um cavalo ou uma vaca, se é que estes animais os tenham. De qualquer tratamento
que recebessem, não podiam apelar para nenhum tribunal, salvo se algum cidadão
humanitário permitisse que o apelo fosse feito em seu nome. A propriedade do
escravo era propriedade do seu senhor. Não se pode dizer que a mulher do
escravo era também propriedade do seu senhor, porque a lei romana considerava o
escravo como incapaz do casamento legal e, portanto, não tinha mulher. Seus
filhos pertenciam ao seu senhor e eram vendidos ou trocados. Se tinha de
comparecer no tribunal, o seu depoimento podia ser arrancado com torturas.
É verdade que houve leis
feitas para reprimir a crueldade com os escravos; porém, como o escravo não
tinha o direito de apelar para a lei, de que lhe servia essa lei? Algumas
delas mostram a vil condição a que estavam reduzidos os escravos; uma obrigava
os senhores a darem a cada escravo um arratel de trigo diariamente; outra
impedia a mutilação dos membros e da língua; outra tirava o direito que os
senhores tinham de os obrigar a combater com as feras nos circos, exigindo,
para esse fim, licença das autoridades judiciais; ainda outra proibia a
sujeição forçada de escravos à prostituição. De um tal Pólio, cavaleiro do tempo
de Augusto, consta que foi censurado por atirar os escravos vivos ao seu lago
para sustentar lampreias, que depois se aprazia em saborear na sua mesa! (29)
Era costume, entre as pessoas
de posição, acorrentarem escravos nus nas portas dos seus palácios, como se
fossem cães-vigias. A história de Lázaro, apontado no Novo Testamento, é uma
alusão a Roma no apogeu da sua civilização. "Os cães vinham
lamber-lhes as úlceras". Sim, os cães são mais compassivos que o homem quando
este tem o espírito completamente apartado de Deus. Não é uma acusação. O dever daqueles cães-vigias humanos, acorrentados, feridos e sem
esperança, era avisar a família no caso de tentativa de assassinato (ocorrência
diária naquele tempo). Naturalmente, como a gratidão não poderia influir no
escravo, recorriam às ameaças; o cão-vigia morreria, se o seu senhor sofresse
dano. O escravo tinha de escolher entre a morte pelo assassínio, se fosse
fiel; ou a morte pelo seu senhor, se não agisse. A história, incidentalmente,
menciona dois destes casos, num dos quais dois escravos de Pedânio Secundo
foram assassinados (10).Resumamos o exposto, para o concluir.
Apresentamos aos leitores as
principais feições do paganismo, sistema que dominou o mundo no período de Augusto.
Descrevemos resumidamente o caráter daquele sistema, a sua natureza
politeísta, sacerdotal e cerimonial. Referimo-nos à crassa obscenidade e
falamos da crueldade flagrante de seus ritos. Esforçamo-nos por dar uma idéia
real da condição moral e social do mundo sob a influência do paganismo e dos seus
efeitos sobre a moralidade e a felicidade das crianças, das mulheres, dos
governantes, do povo livre e dos escravos.
O quadro é verdadeiramente
negro e revoltante; quem quer que leia a história daqueles tempos com atenção,
ficará convencido de que o gênero humano, com poucas exceções, tinha-se
tornado o mais degradante, o mais pecador, o mais ignorante da verdade, o mais
cruel e, enfim, o mais vingativo que é possível imaginar-se. A vingança, tanto
pública como particular, chegava a ser uma virtude. A guerra, o morticínio e a
violência conferiam as maiores glórias; o pudor e a decência, tanto pública
como particular, tinham desaparecido; a crueldade e a ferocidade do povo era
tal que o sangue derramado para seu prazer saciaria uma comunidade de tigres.
Qualquer coisa que hoje
provocaria um tumulto, se tentasse fazer
naquele tempo provocava desordens, se quisesse impedir a sua execução. Além
disso, não havia segurança individual: todos, para onde quer que
fossem, andavam sempre armados; precaução necessária em vista dos assassinatos
e envenenamentos que ocorriam diariamente. O povo não se envergonhava de rogar
aos deuses que auxiliassem seus punhais e suas taças de veneno, no conseguimento
do que pretendiam. Os homens de pensar, desejavam, esperavam e olhavam para
alguém, que não conheciam, que os viesse libertar, horrorizados que estavam
pelo que assistiam. Cada deus que os pagãos podiam inventar ou copiar das
nações conquistadas, tinha os seus altares e os seus templos, e a esses deuses
pediam alívio. Desciam da semelhança de Deus para a semelhança do homem
corruptível, das aves, dos quadrúpedes, e deificavam até lugares imundos,
moléstias, paixões, bicharia e vícios: tinham perdido toda a esperança de
remédio, de solução.
A opinião de Platão, já citada, era de que "os
homens tinham-se tornado mais baixos do que os animais mais vis". Plínio
escreve: "Não há nada certo sobre a Terra e nada é tão miserável e no
entanto tão orgulhoso como o homem". Tácito prevê o fim do mundo,
"por causa da corrupção da humanidade". Sêneca escreve: "Tudo
está repleto de crime, e o vício abunda em todo o lugar; o mal praticado
excede às possibilidades de qualquer remédio; a luta e a confusão tornam-se desesperadas.
Ao passo que a luxúria se degenera em pecado, a vergonha está desaparecendo
com rapidez; a veneração pelo que é puro e bom é desconhecida; cada um cede aos
seus próprios desejos. O vício já não permanece secreto, é público; a
depravação tem avançado de tal maneira, que a inocência torna-se, não somente
rara, mas desconhecida" (31).
É difícil imaginar e
impossível descrever a corrupção abominável daqueles tempos. "A
sociedade", diz Gibbon, "era um caos pútrido de sensualidade".
Era um rio do inferno, de paixões diabólicas e com sede de sangue como uma
horda de animais ferozes. As paixões ultrapassavam as que provocaram a ira do
Céu, quando Deus cobriu o mundo com água ou destruiu com fogo as cidades da
Planície. Paulo, na sua epístola à igreja que se fundou entre este mesmo povo romano, refere-se a algumas formas de
iniqüidade praticadas por ele.
Comparando com o nosso tempo,
observa-se uma diferença sensível, tanto no que diz respeito à moralidade como
à condição social de todas as classes. Agora há mais segurança, mais virtude,
mas conforto e mais felicidade na sociedade e na família. A que se deve
atribuir tal diferença? Não à civilização, nem ao cultivo das artes e letras,
nem ao estudo de filosofia, porque, notai! tudo isso tinha chegado à perfeição
no mundo antigo, no qual prevalecia, no entanto, depravação e maldade.
O período de Augusto tem-se
tornado proverbial como declaramos no princípio, pelo incentivo dado às belas
artes, à literatura e à ciência. Não temos hoje escultores cujos trabalhos
excedam aos de Fídias e de Praxíteles; nem arquitetura que se possa dizer
superior ao Partenon de Atenas ou ao Fórum de Roma; nem poeta épico como
Virgílio, nem lírico como Horário; os nossos pensadores profundos nenhum excede
a Platão e a Sêneca; também não temos historiadores mais talentosos que os
Plínios, os Tácitos, os Salústios e os Plutarcos; nem ator como Róscio; nem
orador que exceda a Cícero.
A nossa condição aperfeiçoada
deve, portanto, ser atribuída a qualquer outra influência que não a da simples
literatura, da civilização ou do cultivo das artes; e a lição que se tira
parece ser que "o mundo não pode conhecer a Deus pela Sabedoria" (32).
As considerações de Blackburn, aplicadas ao grande império Assírio, que quase
desapareceu antes da fundação de Roma, são também aplicáveis a Roma, à Grécia,
e a todos os impérios pagãos de outrora.
"É evidente que a
natureza humana entre os assírios não estava, física ou intelectualmente, num
estado infantil, ou atrofiada. Se contemplarmos as suas formas nas esculturas
ou painéis dos nossos museus, devemos reconhecer que os seus corpos estavam
primorosamente desenvolvidos e que têm o aspecto de uma raça valente, apropriadamente
comparada pelo profeta a leões, no seu aspecto e porte majestoso. E se notarmos o progresso
intelectual, como o atestam as suas descobertas da astronomia; o seu gosto
pelas artes; os seus conhecimentos e habilidade nas indústrias; o seu poder e
aprumo nas armas, devemos confessar que não lhe descobrimos a menor
inferioridade intelectual. E apesar de todas estas vantagens, o que eram eles?
Avarentos, depravados, bêbados, desordenados, opressivos e cruéis. As cenas de
refinamento, esplendor e magnificência que os cercavam, talvez dessem graça e
dignidade às suas maneiras, mas não davam pureza aos seus caracteres, nem
bondade aos seus corações.
"Como todas as grandes
nações de outrora que os cercavam ou lhes sucederam, os assírios eram vítimas
da ignorância, do vício da guerra e do despotismo. O primeiro alvo de todos os
governos - a felicidade do povo - nunca foi considerado pelos seus governantes;
e, por conseqüência, os governados eram os instrumentos dos príncipes sanguinários
e dos sacerdotes idolatras, que colocavam a felicidade e a glória nacional em
despojos militares e em prosélitos constrangidos. A escravidão que impunham aos
seus desgraçados prisioneiros era muitas vezes mais amarga que a morte. É, na
realidade, evidente, em face de toda a história, quer de nações, quer de
indivíduos, que
o simples conhecimento das artes e das letras não é suficiente para renovar
o coração ou melhorar a vida dos que os cultivam. Homens eminentes nas artes e
nas letras tem havido, destituídos de senso moral, e escravos dos vícios mais
baixos, vis e degradantes. Não obstante terem vivido entre as cenas mais belas
da natureza e da arte, todas as influências suaves e edificantes do que é belo
e sublime têm passado por eles em vão, e os países mais belos têm testemunhado
os crimes mais repelentes. Conquanto nos regozijemos pelo progresso das artes,
da ciência e da literatura entre nós e folguemos de ver os museus, galerias de
pintura, escolas de arte, parques, jardins de recreio e zoológicos, tudo
destinado ao povo, mesmo sabendo que tais distrações desviam a atenção das
massas de coisas grosseiras e prejudiciais, entendemos que tudo isso não
impede sejam os corações altivos e egoístas, sensuais e ímpios; capazes tanto
de manifestar misantropia, como rebelião insolente contra o Altíssimo.
"É somente pela
influência da Verdade divina no coração, que o homem pode ser restaurado à uma
feliz conformidade com o caráter moral de Deus."
EXTRAÍDO DO LIVRO:
AS CATACUMBAS DE ROMA - BENJAMIM SCOTT
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